Por Marcos Rogério Feitosa de Araújo
Registrar o passado. Eis aqui, talvez, o maior gênio humano desenvolvido e
aprimorado desde os primórdios. Mas o que seria esse registro? Como seria
produzido, por que e pra quê? Seria o homem, antes de um contemplador da
natureza, um contemplador de si mesmo? Seus registros seriam um aceno ao
futuro ou seria a necessidade de saber de si a razão de ir à busca do passado?
Tais indagações são pertinentes para que possamos fazer aqui uma breve
discussão acerca da História, seus objetos e suas interpretações. Entretanto,
começarmos pelos primeiros registros do homem, ainda nas cavernas, ou também
com as primeiras produções, tidas como verdadeiramente históricas com Heródoto
e Tucídides, a nosso ver seria um tanto precipitado para o escopo e para a
natureza desse texto. Portanto vamos aqui nos ater, não de forma
cronologicamente sequenciada, a algumas produções teóricas desde os iluministas
até os historiadores da “Nova História Cultural”.
E desde esses primeiros, o
estudo da História vem tomando cada vez maior importância, talvez para a busca
da compreensão de si mesma enquanto produção epistemológica, sua relação com
seu objeto e seu compromisso com a sociedade. Porém, todavia, é no final do
século XX que essa importância toma a sua maior proporção, haja vista a
quantidade de produções históricas patrocinadas tanto pelas instituições
públicas quanto pelas privadas. Mas tal constatação vem seguida de desafios
concernentes à reconfiguração da forma de escrevê-la, ao crescimento
expressante da noção de registro histórico, seus compromissos éticos e sociais
enquanto ciência ou enquanto conhecimento que se relaciona com a ciência
“O programa do iluminismo era livrar o mundo do feitiço” (Adorno e
Horkheimer), propondo uma nova interpretação do mundo. É razoável
entender que essa nova hermenêutica seja a pretensão científica e racional,
procedendo de forma inteligível e com plausibilidade lógica para formulação de
hipóteses, voltada para a explicação do passado como ideia única rumo ao futuro
promissor, ou ainda rumo à sociedade sem classe. E, ainda, “... deram um
sentido novo a coisas que não tinham sentido. Na realidade, eles mudaram a
natureza do signo e modificaram a maneira pela qual o signo em geral podia ser
interpretado” (Foucault). Esses novos signos podem se
entender como relações de poder.
Em oposição a estes, a História, a partir de Lucien
Febvre e Marc Bloch, começa apontar para outras preocupações
relacionadas às idéias e a realidade social através de categorias e não
influenciadas pelo determinismo. Também é possível notar que ao longo do século
XX começa haver uma relação entre História e Literatura, isto porque se vê a
primeira apoiada nas interpretações de textos que o passado deixa como
vestígios no presente. Portanto, nessa perspectiva, não se pode haver uma
verdade histórica absoluta, pois a demonstração cabal do passado será sempre
mediada pela subjetividade de quem a produzir.
Então, a História seria apenas
uma fabricação? Estaria ela descompromissada com as práticas sociais?
Acreditamos que não. Ao contrário, a História, em investigar o passado para
encontrar respostas às novas exigências sociais, fez com que seus princípios
epistemológicos se atualizassem se aproximando dos sujeitos sociais através de
suas práticas e “representações” (Chartier). Daí as variadas
orientações das Ciências Sociais (dois exemplos: Durkheim e Webber) e da
Antropologia que foram incorporadas pelos estudos históricos de formas
diferenciadas conforme as exigências teóricas e metodológicas de cada abordagem
englobando desde as tendências da sociologia quantitativa, as abordagens
econômicas e estruturalistas da Escola dos Annales até as novas
teorias marxistas.
As diferentes abordagens teóricas da História ao longo do século XX têm como um
dos pontos centrais saber qual é seu objeto e qual seria sua área de pesquisa
diante da multiplicidade de sentidos dos vocábulos que constitui os objetos e, como estabelecer limites para o campo histórico de investigação, haja vista a
“intradisciplinaridade e interdisciplinaridade” (Chartier) se
multiplicarem no segmento da Teoria da História. Tomemos como ponto de partida
a assertiva: “A história é uma narrativa de eventos: todo resto resulta disso”
(Veyne). Os “eventos” aqui mencionados podem, perfeitamente,
ser entendido como o próprio kaos, aquilo que se traduz em um
caráter ilimitado da matéria no tempo e no espaço (entendamos matéria como a
própria extensão do objeto histórico).
Notemos que o evento não se destaca aos
olhos do historiador por apenas ser fenomenológico, mas por ser produzido
paradoxalmente por particularidades múltiplas, porque é a narrativa de alguém
(por várias formas: documentos, crônicas, arte em geral e etc.) de um dado
presente e que no instante da pesquisa já é passado podendo ser ou não complexo
e corriqueiro. Então, o evento é o fenômeno das relações humanas transformado
em fato histórico quando elencado pelo historiador para atender a seu discurso
e logo sempre vai ser diferente, porque é o discurso que o individualiza e que
o torna especial.
A fonte escrita é, sobretudo, um discurso. Por ser um discurso, é plurifacetal
nas interpretações que lhe cabem. Ao ser produzido, o texto visa, obviamente,
um alvo, seja ele individual ou coletivo. É claro que a carga de conteúdo varia
conforme o público a que ele se destina. Uma carta pessoal não contém a mesma
construção textual de um código de leis. Ambas, porém, têm seu valor, na medida
em que respondem a perguntas diferentes do historiador. Mas o texto, sobretudo,
revela nas entrelinhas o juízo e o valor que o autor fez a respeito do objeto
que trata. É, antes de tudo, uma leitura que traduz uma visão particular sobre
o tema abordado. E por isso seleciona, ao longo do tempo e de um determinado
espaço o que lhe é de mais interessante, daí “o historiador nunca faz
revelações tonitruantes, capazes de transformar nossa visão de mundo; a
banalidade do passado é feita de pequenas particularidades insignificantes que,
ao se multiplicarem, acabam por compor um quadro bem inesperado.” (ibdem).
Portant, o é desse criativo construto que se estabelece o enredo da história,
aquilo que se consubstancializa no discurso competente, aquilo que é apreendido
pelos leitores e tomado como verdade. Há de se considerar também que as
interpretações feitas a respeito dos documentos são tão incrustadas de caráter
discursivo como os próprios documentos. Sendo assim, o profissional, como
obra-prima das influências de seu tempo, deverá embutir idéias e preceitos
quase organicamente alojados em sua formação intelectual e fazê-las reproduzir
em sua própria interpretação. Infere-se, dessa forma, que cada obra guarde uma
‘marca metodológica’ do tempo em que ela foi produzida. Logo, na medida em que,
por exemplo, a historiografia sobre um tema aleatório possa revelar o
pensamento do historiador sobre o objeto de estudo, pode também trazer à luz
elementos teóricos comuns à época daquele autor. Em suma, a historiografia
também faz parte do estudo da História, portanto o documento quanto o que se
escreveu sobre ele goza de juízos específicos, já que é produto do seu tempo.
Diante do exposto, podemos ainda acrescentar a esta abordagem o seguinte
aspecto congruente que é tratar da palavra invenção dentro desse contexto e,
possivelmente, podemos está convencido da sua inter-relação com a empiria no
fazer histórico, porque mesmo que se tenham inúmeros entendimentos da palavra
invenção acerca de toda a produção do conhecimento humano, percebe-se o quanto
se correlacionam o objeto e o sujeito para constituição do conhecimento
histórico por aquele que por meio exclusivo de sua subjetividade faz erguer-se
como se fosse um conhecimento novo daquilo que é pesquisado. Logo a compreensão
dessa invenção pode está ligada a ideia de ruptura, contrapondo-se a qualquer
modelo que fez da História produto de um sistema que tem suas leis próprias, e
que implicaria permanência e continuidade, evolução e desenvolvimento dos
eventos e que tem significados constituídos, apenas por aqueles que o
vivenciaram ou foram seus contemporâneos, os agentes dos eventos históricos,
aqueles que deixaram seus vestígios. É como se o acontecer histórico fosse
regido por uma essência, logo uma substância ou coisa que transcende as
experiências sensíveis e que não houvesse nenhuma interferência do sujeito e
sua subjetividade. Ao contrário, o fato histórico pode ser um conjunto de dados
ou de eventos apreendido através da experiência, por intermédio das faculdades
sensitivas (e não por meio de qualquer necessidade lógica ou racional).
A subjetividade é uma via de duas mãos entre o sujeito e objeto no fazer
histórico e sua narrativa traz consigo uma carga semântica que é determinada
pela cultura intrínseca de um e de outro, “Creio que cada cultura, quer dizer,
cada forma cultural na civilização ocidental, teve seu sistema de
interpretação, suas técnicas, seus métodos, suas maneiras próprias de supor que
a linguagem quer dizer outra coisa do que ela diz, e de supor que há linguagem
para além da própria linguagem.” (Foucault).
A partir dos anos 60 do século XX, o debate acerca de cultura tomou ainda
maiores proporções. Esta afirmação é valida para a compreensão da contigüidade
entre áreas de pesquisa e polissemia dentro da Teoria da História e a
interdisciplinaridade entre a História, Ciências Sociais, Antropologia,
Psicologia e Literatura. Mas para isso se faz imprescindível abordamos sobre a
História Cultual e, portanto lancemos mão da, talvez, principal obra que aborda
esse tema: “A história Cultural: entre práticas e representações”. De acordo
com esta obra: “pode-se dizer que a proposta da História Cultural seria, pois,
decifrar a realidade do passado por meio das suas representações, tentando
chegar àquelas formas, discursivas e imagéticas, pelas quais os homens
expressam a si próprio e o mundo” (Chartier). Ou seja, tudo
que tem história, ou, antes, todos os laços simbólicos que convergem em um
conjunto de códigos que podemos chamar de cultura é área de pesquisa da
História Cultural, é o que constitui o seu campo de investigação.
Todavia, o
termo “cultura” é um tanto polissêmico a ponto de oferecer certa resistência à
construção de um conceito menos teleológico e mais preciso para essa nova
história. Entretanto, muito embora, tenhamos essa dificuldade léxica do termo,
todavia nos parece um tanto quanto límpido à abordagem do seu objeto na
prática, se não vejamos: “Em conseqüência, o objeto fundamental dessa história
cujo projeto é reconhecer a maneira como os atores sociais investem de sentido
suas práticas e seus discursos parece-me residir na tensão entre as capacidades
inventivas dos indivíduos ou das comunidades e os constrangimentos, as normas,
as convenções que limitam - mais ou menos fortemente, dependendo de sua posição
nas relações de dominação - o que lhes é possível pensar, enunciar e fazer.
A
constatação vale para uma história das obras letradas e das produções
estéticas, sempre inscritas no campo dos possíveis que as tornam pensáveis,
comunicáveis e compreensíveis. ”(ibdem). Neste contexto, a
História Cultural possibilitou o deslocamento epistemológico dos processos e
estruturas sociais para estudar a cultura, na vivência do dia-a-dia. É por isso
que verificamos a multiplicação de novos pontos de vista da sociedade e do
homem, cujo escopo principal seria as produções de sentidos e das práticas
culturais. Não se quer mais saber acerca da qual seria a razão de alguém viver
sob determinadas condições sociais, mas saber de suas representações a partir
de como se ver a si próprio e o mundo social na qual se encontra inserido.
Destarte, o papel da linguagem vem ser mais um ponto central para essa
discussão, porque através dela é que se revelam o objeto e o sujeito, pois
quando se diz de outro se diz mais de si que do outro. Portanto, toda
construção histórica acaba sendo também um falar de si. Nela está contida uma
gama de valores, expressões que revelam: a origem natural, a origem social, a
origem familiar, o segmento social, as relações de poder e micro poder, os
amores, as utopias, as frustrações, a formação intelectual, os contentamentos
de qualquer indivíduo (objeto e sujeito).
Permitam-nos, a exposição de uma obra literária musicada para desfecho deste
texto corroborando com o supracitado:
“Não se afobe, não/Que nada é pra já/O amor não tem pressa /Ele pode
esperar em silêncio/Num fundo de armário/Na posta-restante/Milênios,
milênios/No ar/E quem sabe, então/O Rio será/Alguma cidade submersa/Os
escafandristas virão/Explorar sua casa/Seu quarto, suas coisas/Sua alma,
desvãos/Sábios em vão/Tentarão decifrar/O eco de antigas palavras/Fragmentos de
cartas, poemas/Mentiras, retrato/Vestígios de estranha civilização/Não se
afobe, não/Que nada é pra já/Amores serão sempre amáveis/Futuros amantes,
quiçá/Se amarão sem saber/Com o amor que eu um dia/ Deixei pra você.”
(Futuros amantes, Chico Buarque de Holanda).
É razoável perceber que nesta letra se encontra alguns dos problemas
levantados, demonstrando, por meio de abstração, a relação entre o sujeito e o
objeto, e as possibilidades de apreensão pelo leitor, dependendo da apreciação
pelo mesmo e da construção de um discurso competente daquele que se propõe
fazer do evento um fato histórico.