domingo, 28 de abril de 2013

Textura

As mãos destreinadas e não hábeis desenham traços ilegíveis,
são movimentos sinuosos em busca de um traço,
que não veio porque não há nenhum
a não ser a vontade de ser, já sendo,
quanto mais as mãos espalham a massa arenosa
mais se parece com nada
a não ser a vontade de parecer com alguma coisa;
quem sabe um desejo de um artista,
um salto pela falta de destreza em já sendo alguma coisa,

De longe um painel, uma moldura de um quadro,
de perto, apenas desenhos ilegíveis, rabiscos sem sentidos
a não ser a vontade de ser alguma coisa, já sendo: um traço de moldura,
um espaço seu, uma marca de um desejo de um artista sem a destreza querendo ser alguma coisa

Mas aquelas mãos destreinadas pincelando amarelo ocre naquela massa arenosa
impingiam digitais numa parede que já passou a ser uma moldura, um espaço seu,
um lugar de identificação, um dos poucos, talvez o único naquele lugar,
que de longe parecia um quadro, de perto, apenas traços indecifráveis

Quanto mais latas de massa mais se revelava a falta de treino, porém, mais desejo de ser, já sendo,
já não importava o resultado final, o acabamento, as leituras, pois aquilo não era uma simples textura
era a vontade de ser, de fincar um lugar naquele espaço, de ser alguma coisa,
de tentar dizer que estava tentando,
era uma forma de tentar, do seu jeito,
pura e simplesmente uma forma de tentar

Hoje, não há mais amarelo ocre,
uma camada branca encobre o que um dia foi um traço de moldura,
para se saber se um dia foi textura é necessário chegar bem perto
e reconhecer os antigos traços indecifráveis,
o que um dia foi a vontade de ser,
o que um dia foi a forma de dizer que queria ser
o que durante algum tempo foi
    











quinta-feira, 25 de abril de 2013

Quando realidade e ficcão não são o que pareçem

Um sonho insistente, recorrente a atormentar uma mente. Uma gravata para desbravar uma bravata. Uma torrada ainda quente, um café descafeinado, uma agenda cheia pela frente. 

No carro aquele som que lembra aquele momento, na mente, a lembrança insistente do sonho. E a dureza da vida nos faz achar que encher o tanque do carro é mais real que os sonhos, que o trânsito parado, pagar as contas, acumular capital, são a máxima expressão da vida, para muitos, a única.

Platão possivelmente foi o primeiro a sistematizar a noção da existência do mundo das ideias. Para ele, o mundo cognominado como real era uma derivação do mundo sensitivo, das ideias. Daí em diante, e sobretudo após a construção da literatura diferente da história, a expressão prosaica da vida abastardou-se da via poética. 

Apareceram teorias metafísicas e sínicas acerca das noções de representação, não apenas da realidade, como também das expressões de um mundo não objetivo, que por sua vez são extensões da vida. Como a realidade palpável passou a ocupar cada vez mais a perspectiva da condução da vida, formas de elucubração, reflexão filosófica passaram a ser antítese de um mundo dito real. 

As tensões entre realidade e metafísica ganharam ares de divisão ancilar quando Descartes fundou a ciência moderna, depois corroborado por Bacon e toda a construção do mundo ocidental. Sonho e realidade, prosa e poesia, concreto e abstrato, subjetividade e objetividade, conotaram pares antitéticos como se a construção de um entendimento do mundo necessariamente tivesse que ser separada, e não dual. 

Quando a história se separou da filosofia e da literatura no século XIX, no processo de entificação da ciência histórica, as formas de concepção do mundo, corroboradas pelo embate entre Hegel e Marx acerca da metafísica e do materialismo histórico dialético em construção, se tornaram ainda mais graves quanto ao que é real e o que é imaginário, subjetivo. A ciência do século XIX, pautada no empiricismo, prometia a felicidade e a verdade, prometia o desvelamento da vida calcado apenas na tangibilidade do que a experiência sensorial e tátil poderia aferir, ou seja, mais do que nunca prosa e poesia seriam antagônicas.

Até surgir a psicanálise e nos inquietar sobre o quanto os sonhos são mais concretos do que imaginávamos. A literatura, o cinema, a poesia do século XX nos revelaram mundos, sentidos e sensações dantes nunca sentidos. O realismo fantástico e mágico, os contos, crônicas, apontaram suas flechas para o mundo dito real, objetivo e concreto desafiando-os no sentido de mostrar que a vida não se resumia ao sentido das aparências.

Edgar Morin, em Amor, Poesia, Sabedoria, aventa que prosa e poesia são linguagens distintas, porém, complementares. A prosa dá conta da metodologia, da mecânica sistemática, da pragmática; a poética, do plano simbólico, do imaginário, do sensível e não palpável.

A questão é a separação entre as duas dimensões. Necessariamente não são antitéticas. A dimensão prática, objetiva, metódica é uma dimensão da vida, qual a prosa, dentre ela, a histórica, dá conta, se atém, oferece resultados, prefigura uma instância de percepção do real. A poética, simbólica, denota o não revelado, nem por isso fictício, irreal, apenas não compreendido.

Há um elemento que aproxima Platão, Hegel e Edgar Morin: a ideia de que o que entendemos enquanto realidade é ficção e a ficção é realidade. O que se apresenta cotidianamente para nós no plano da objetividade, da realidade, são prefigurações do que existe no plano das ideias. Portanto, a ficção não é o que não existe, e sim, a mais próxima condição do que nós somos, ao passo do que se apresenta no plano do concreto é um distanciamento do que nós somos. A crueza da vida são as acumulações dos papéis sociais que assumimos, a vida não está no divã, mas no personagem literário, no cinema.

Por isso que o cinema, a literatura, a arte em geral, também expressam o que nós sentimos e precisamos o tempo todo recorrer a elas, não apenas como catarse, como válvula de escape, como também porque no fundo desconfiamos de que existe algo para além da praticidade da vida.

Os sonhos insistentes a atormentarem as mentes são o que de mais próximo sentimos. A gravata para desbravar uma bravata é uma ficção travestida no concreto da realidade a nos mostrar o quanto as duas dimensões coexistem. Ambas necessitam uma da outra, afinal, só damos conta do que sentimos, portanto de quem somos, quando pela manhã, ao comermos uma torrada quente, bebermos um café descafeinado, começamos a refletir sobre o que sonhamos na noite anterior.    

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Dançando com Alberto Nunes Tugeiro


Uma calça de linho folgada, daquelas que deixam as pernas soltas, bambas, dispostas para o dois pra lá, dois pra cá. Foi escolhida especialmente para aquela noite de alegria, de dança, de passos pesados pela dimensão corporal, mas que revelava já um homem maduro, alegre, consciente de seu papel como pai, avô, amigo.

A camisa era igualmente bonita, escondia a cicatriz de uma cirurgia cardíaca cuja epiderme por sua vez escondia um aparelho por nome marcapasso ajudando aquele grande coração a bater ao lado de três pontes de safena.

A calça também escondia outra cirurgia: a mesma que retirou uma grande veia da perna para as pontes. Naquela noite, as únicas pontes que importavam eram as que ligavam à dança, às companhias, à música, à alegria e à certeza de uma vida feliz.

No mar, exatamente perto dele, sob o escopo da brisa e das cadências das ondas que iam e vinham, os passos ritmados ali perto repetiam o movimento da vida, cadentes, de um homem de 74 anos de idade; grande, afável, falador, brincalhão, amigo, excelente pai e avô. O mesmo homem conhecedor das histórias que o mar carrega, exatamente por possuir um grande arsenal de histórias, algumas tão surreais quanto as dos pescadores. Assim era ele, um grande contador de histórias por tê-las vivido tão bem.

Conheci Alberto Nunes Tugeiro em 1996 em sua grande residência no Monte Castelo, Rua Raimundo Correia, a mesma rua que anos antes eu frequentava quando aos domingos me congregava na Igreja do Evangelho Quadrangular. Os caminhos de Raimundo Correia entrecruzando os meus, até hoje pela veia e via literária.

Quando me olhou apresentando por Lúcia Tugeiro, sua filha, minha namorada, fechou a cara obtusamente por conta de meus cabelos longos e meu brinco na orelha esquerda. Ele nada entendeu. Mal sabia que por longos 17 anos aquele cabeludo de brinco na orelha esquerda seria seu genro, pai de duas de suas netas e seu amigo por toda a vida.

Éramos parceiros no jogo de gamão, eu quase sempre o vencia, meu aliado no garfo e na boa mesa, meu companheiro de jogos da Liga dos Campeões da Europa, meu adversário de clube, ele Vasco, eu Flamengo, meu debatedor sobre políitica, meu amigo, meu amigo.

Esse paraense, criado no Rio Grande do Sul, morador do Rio de Janeiro, andarilho do mundo, trabalhador, gigante com quase 1,90 cm, 120 kg, era portador de um coração incrível, porém frágil. Foi militar, contador, bancário, medidor de obras, construtor civil, dono de restaurante. Foi de quase tudo um pouco.

Chegou ao Maranhão na década de 60 e de lá pra cá nunca parou de crescer e constituir amizades. Participou da fundação da SURCAP (Serviço de Urbanização da Capital), da restauração do bairro da Praia Grande, da criação do Aterro do Bacanga, da construção do Estádio do Castelão e de várias obras importantes da construção civil maranhense. Era uma memória viva da evolução urbana na cidade. Na época, eu, um estudante de História, me servi de suas memórias para a confecção de minha monografia de conclusão de curso exatamente sobre a evolução urbana de São Luís a partir da década de 60. Foram horas e horas de entrevistas.

Esse grande homem era pai de Alberto Filho, Albertinho, Elisabete, a bete, Lúcia, Ribamar e Paulo, o Paulinho. Avô de 13 netos, todos absurdamente apaixonados por um avô engraçado,  amigo, brincalhão e extremamente companheiro. Tal paixão era desmedida quando se tratava dos filhos. Todos tinham nele uma referência.

Esse homem grandão tinha pelo corpo as marcas da vida: uma orelha cortada por um gravíssimo acidente de carro viajando a trabalho na estrada sinuosa de curvas perigosas que levam a Imperatriz, onde residiu por algum tempo. Era insistente e corajoso. Já safenado, foi de carro com seu filho Ribamar dirigindo até Porto Velho. Ai de quem dissesse que ele não poderia dirigir!!!!

Era um homem do mundo, conhecedor dos caminhos e percalços da vida, sabedor, inclusive, que sua jornada estava chegando ao fim. 

Há duas semanas, quando sua filha Lúcia comprou uma passagem para ele ir ao Rio de Janeiro visitar sua filha Bete, seus netos Juninho, Deco e Letícia e seu genro Bira, ele calmamente disparou: – “Filha, eu não mais voltarei ao Rio, eu não estarei mais aqui”... Semana passada quando almoçávamos juntos, ele me chamou em particular e me confidenciou: – “Henrique, meu fim está próximo, não vou ficar muito mais tempo por aqui, minha morte se aproxima”, de forma plácida, serena e tranquila. Olhei para ele seriamente, ele me sorriu.

Eu o vi pela última vez no sábado, quando pela última vez também almoçaríamos juntos. Fui buscar minhas filhas para passar o final de semana. Como sempre, conversamos sobre futebol, como sempre, zombou do meu peso, do tamanho do meu prato de comida, ele adorava fazer pilhéria sobre a minha forma de comer. Levou minhas filhas até o meu carro, minha caçula Milene como sempre brincou com ele; ele sorriu. Foi a última vez que o vi.

De madrugada meu telefone tocou, era Lúcia.  Eu já sabia do que se tratava. Contou-me que ele estava dançando com a calça de linho escolhida para aquele noite, a mesma calça que escondia a cicatriz que retirou uma veia da perna, a que deixava as pernas bambas para bailar, rodopiar no salão com sua grande amiga Fátima. Com a mesma camisa bonita que escondia a longa cicatriz do peito, cuja epiderme escondia o marcapasso. Após uma noite de piada, de alegria, depois de três danças, o coração parou; o mesmo grande e generoso coração, porém, frágil.

Ele morreu dançando, sob a brisa do mar, embalado pelas ondas que vão e vêm como uma dança de dois para lá e dois para cá. Driblou a vida, dançou com ela, se despediu dançando.

Hoje, pela manhã, bem cedo contei para minha filha Lucía sobre a partida do avô. Disse:

– Filha, seu avô viajou.
– De novo, pai...
– De novo, filha.
– Ele foi de carro?
– Não.
– Foi de ônibus?
– Não.
– Foi de táxi?
– Não.
– Foi de quê?
– Foi voando filha.
– E ele levou mala de roupa?
– Não.
– Meu Deus, meu avô sapeca tá sem roupa.
– Não se preocupa filha, teu avô agora se reencontrou com sua avó Cidália, tá cercado de gente contando as histórias dele. E quanto às roupas, ele sempre dá um jeito. Está vestido a caráter, como quem não veio nessa vida a passeio, mas sempre dançou nos bailes da vida.      












segunda-feira, 15 de abril de 2013

A onda preocupante do fanatismo religioso e fundamentalista

Estamos assistindo no Brasil a um fenômeno que não é novo, mas com matizes novas em decorrência do momento histórico: o fundamentalismo religioso, carregado de preconceito, moralismo rasteiro, irracionalidade, disputa ideológica com pinceladas de intolerância, inclusive racial.

O Brasil ainda é um país católico, mas o protestantismo já soma 35.000.000 de fiéis divididos em vários segmentos: histórico, tradicional, pentecostal, neopentecostal. A convivência com outras religiões sempre foi travada de conflitos, mas o direito à liberdade de expressão religiosa está assegurado pela Constituição de 1988.

O crescimento dos evangélicos fez surgir um elemento sociológico novo: o proselitismo midiático, eletrônico, com a compra e concessão de redes de televisão para igrejas evangélicas. Foi o início da guerra religiosa, midiática. Novelas, seriados, documentários de canais pró e antievangélicos estavam e ainda estão carregados de mensagens diretas e subliminares contra emissoras de outras matizes religiosas.

Enquanto a guerra se travava no plano midiático, as contradições sociais e culturais não se acirraram tanto quando atingiu o papel do estado. Quando essa instância passou a legislar sobre polêmicas como o casamento e/ou união civil de pessoas do mesmo sexo, aborto, educação e estado laico, as contradições afloraram, os conflitos, inclusive de raça, tomaram matizes como dantes nunca vistos. 

Por um lado, isso é muito bom, afinal, no Brasil sempre se optou pelo silenciamento, pelo não conflito, pela não luta e disputa de ideias e classes. Assim sendo, estamos assistindo a uma verdadeira luta ideológica gerida a partir da religião, cujos tentáculos se espraiam para vários ramos.

Por outro lado, é péssimo pela pobreza do debate, pela natureza do que determinados religiosos defendem: um conceito congelado de família, como se desde a década de 70 mais da metade das famílias brasileiras não fossem comandadas por mulheres solteiras e independentes financeiramente; uma discussão eivada de preconceito sobre a sexualidade, equívocos e distorções; um debate ridículo quanto à questão racial acusando os negros de serem amaldiçoados por Deus.

É claro que o percentual de evangélicos que defendem essas posturas é muito pouco, mas macula a imagem de todo o resto. Tomaram uma condição subjetiva como a fé num debate sobre intervenção estatal e jurídica, e nisso as coisas se agudizaram.

Quando surgiu recentemente a proposta colocada por setores evangélicos sobre o fim da laicização do estado, o sinal amarelo acendeu. A laicização do estado é uma conquista histórica, necessária, exatamente para impedir que concepções subjetivas possam dirigir e decidir sobre milhares de pessoas, inclusive as que não possuem religião.

Já assistimos aos horrores da Santa Inquisição, da Noite de São Bartolomeu, da perseguição e guerra a Canudos, interior do Brasil, do Domingo Sangrento, Sundae Bloody Sundae, e estamos possivelmente na iminência de uma nova guerra religiosa, agora no Brasil, caso os ânimos continuem aflorados com esse nível de debate sobre interferência e limites do estado.

É claro que o estado não pode legislar sobre a liberdade de expressão e opinião do que se divulga e manifesta no seio de uma igreja, assim como os religiosos não podem exigir que o estado laico estabeleça as bases da lei a partir de suas convicções religiosas.

Era de se expressar que no século XXI a liberdade de opinião e expressão estivessem asseguradas, mas há limites. Quando manifestações e declarações como as do Pastor Marco Feliciano ofendem a historicidade, a identidade de gays, lésbicas, simpatizantes, transformistas, negros, chamando-os de “amaldiçoados”, o que aparece no horizonte é o risco da imposição pela condição de lei – um deputado federal, ex-presidente da Comissão dos Direitos Humanos –, ser impetrado por séquitos que defendem os mesmos princípios. É o jogo democrático? Sim, porém, há limites, sobretudo quando o direito das minorias for atropelado e vilipendiado por uma maioria religiosa, esse é o perigo desse protestantismo fanático, fundamentalista, preconceituoso e racista crescente. 

É claro que isso é apenas um segmento pequeno dentro dos evangélicos; a grande maioria sequer se identifica com isso; a questão é que os deputados da bancada evangélica, a pior bancada do congresso, os mais faltosos e que respondem por processos judiciais, são sectários deste tipo de concepção, afinal, foi dessa base que surgiu a proposta do fim da laicização do estado.

O que está em xeque são práticas culturais seculares como as das religiões afrodescendentes, tradições culturais brasileiras, o convívio entre diferentes grupos e etnias, o respeito à diferença, o desequilíbrio do jogo democrático, como se tudo valesse à pena apenas pela força e imposição de uma minoria crescente e agressiva. 

Os ataques e declarações de evangélicos fanáticos no facebook são estarrecedores. Um rito de ignorância e estupidez sobre diversos assuntos sem o menor decoro, sem a menor acuidade, investigação, razoabilidade, tudo em nome de um “Deus” vingativo, parcial e rancoroso.

Já assistimos a isso ao longo da história e estamos vendo isso de novo.   

Parece de que fato a história não ensina nada.         




Entrevista com Arton, de Sirius. Parte II

  Entrevista realizada no dia 14 de fevereiro de 2024, às 20:00, com duração de 1': 32'', gravada em um aparelho Motorola one zo...