quarta-feira, 15 de maio de 2013

O fim da experiência

Duas "sensações". 

Assisti na quinta-feira, dia 09 de maio, na companhia de minha namorada Aline Mendes, no novo estádio Castelão, agora Arena Castelão, em Fortaleza, Ceará, reformado para a copa do mundo de 2014, o inesquecível show do ex-Beatle, Paul McCartney. A arena estava completamente lotada. Foram 3 horas de show, voltou ao palco 3 vezes, celebrou um noivado, se emocionou, foi absurdamente simpático com o público, se esforçou em falar português, cantou novas e velhas músicas e, sobretudo, não deixou de fora os grandes sucessos dos Beatles.

Para um público que nunca teve a oportunidade de vê-los de perto, ver o Paul McCartney era como reviver a sensação, a "experiência" vivida naqueles tempos. Havia gente de toda idade e geração, mesmo quem só ouviu falar deles quando muito tempo depois de desaparecidos. 

Segunda "Sensação". 

Ontem, reuni meus alunos das disciplinas Teorias da História e Introdução à Pesquisa Histórica no auditório do prédio da Arquitetura para exibir o longa metragem: "Nós que aqui estamos, por vós esperamos", 1998, de Marcelo Masagão. Um documentário viso-textual sobre o século XX. Quando acabou abri o debate e foi nítida a percepção de que o documentário falava sobre um tempo muito, muito distante, como se o século XX ocorrera há pelo menos 100 anos atrás. 

Em parte, isso se deve ao que Jean Baudrillard chamou de aceleração do tempo, hiper-real, hiperespaço, quando temos a sensação de que passado e presente são cada vez mais descontínuos, desconexos. A aceleração do tempo elimina a percepção sobre a história porque não há condensação dos fatos, não há reflexão, se não há reflexão, não há história. Vivemos uma espécie de presente contínuo. 

Por isso, buscamos cada vez mais remakes, filmes retrôs, pastiches, coisas blases, como se somente o que se viveu no passado tivesse sentido e real significação. E isso não é de todo absurdo. Uma parte advém da sensação de que o foi é sempre melhor do que está, uma idealização do passado, uma construção a posteriori do que se viveu, outra parte, isso está relacionado com o fim da experiência. 

A noção de simulacro, de coisificação das relações sociais, de consumação de tudo, nos projetou para um amálgama social em que tudo passou a ser pasteurizado, posto que tudo passou a ser desvinculado de sua matiz espiritual, no sentido da vivência radical, sensível, emotiva e não apenas participativa, em que estar em lugares e com pessoas não traz outro sentido a não ser aparecer, ser visto, "causar", como se o referente de fazer algo estivesse desatrelado da "experiência" de se viver algo intensamente.

E é sobre isso que nos fala Giorgio Agambem. Não há mais experiência porque perdemos a capacidade efetiva de uma vinculação pautada nos desejos mais pungentes, mais sinceros de nós mesmos, de experienciar de fato aquilo que nos subjetiva, e sim, fomos tragados pela ausência do referente que busca a sensação do desejo do outro, das vozes que não são nossas e, por conseguinte, são derivações de outras vozes ditando o que pode ser vivenciado, compartilhado. Estar fora disso é ser lançado ao opróbrio, a invisibilidade, a lógica da exclusão. 

O que leva multidões a verem o Paul McCartney, além de seu estrondoso talento e carisma? Há sensação de reviver um período, um tempo em que as pessoas gozavam de experiências, um tempo em que as músicas possuíam um sentido em si, não eram produzidas numa escala e lógica industrial em que um mesmo hit poderia simplesmente ser substituído por uma outra letra, já que a lógica de reprodução de sucesso se encarregaria de fazê-la ser executada ad nausea. Quando um cantor fazia uma musica estava relacionado a uma sensação singular, a uma experiência particular, uma atmosfera em que, mesmo com os elementos da indústria cultural elaborando um sistema de reprodutibilidade, tal configuração não estava completamente desvinculada do que as pessoas sentiam, desejavam, queriam, ainda que de forma alienada, levado por um impeto qualquer.

É claro que os Beatles não fugiram da lógica da indústria cultural, muito pelo contrário, foram a maior expressão dela em todos os tempos, mas havia um espirito de época perturbador, uma vontade de mudança do mundo, por isso, seu estrondoso sucesso se coligava com um momento de transformação do mundo.

E hoje? Quais sensações a música nos liga? De que experiências vamos falar, senão as cada vez mais individualizadas?  

Os meus alunos tão jovens ficaram abismados ao verem um século tão radical, A era dos extremos, no dizer de Eric Hobsbawn. Extremista em todos os sentidos: politico, sexual, religioso, comportamental, educacional, cultural, social, econômico. Essa realidade permeada de ideologia, de tanta potência lhes parece cada vez mais distante. 

Se emocionar ao ver o Paul McCartney é como sentir numa bolha, numa redoma que nos isola de um mundo hoje tão pragmático, individualista, competitivo, agressivo, cuja ação de acumular é mais importante do que a de poetizar, amar, chorar. Ouvir Love me do, Yesterday, Eleanor Rigby, Hey Jude, Band onde the run, Live and let die, Here today, Something, Come togheter, Ebony and Ivory, ainda que seja por apenas miseras 3 horas, num estádio lotado, cheio de luzes, pirotecnia, efeitos visuais, tecnologia de última geração, é sentir-se numa espaçonave, num disco voador, teletransportando todos os passageiros para o passado, exatamente para aquele século radical, extremista que nos parece cada vez mais distante e, por alguns instantes nos fazer esquecer da selva feroz, mordaz, existente fora do estádio.

É para isso que existe a poesia, a beleza, a sensibilidade. Ninguém aguenta competir o tempo todo. Por isso a gente se emociona e se embala ao ouvir And I love her.

Em Goiânia até os gafanhotos subiram ao palco, inundaram o show, uma nuvem deles, ficaram ao piano com Paul, subiram pelo seu corpo e um deles virou amigo do ex-Beatle. Os gafanhotos não quiserem "out there" (tema da turnê), se sentiram convidados, literalmente não quiseram ficar "lá fora".

Um gafanhoto sendo amigo de um besouro. Uma experiência radical.                           

2 comentários:

  1. Amo ouvir Elis Regina, Renato Russo, Cazuza e outros artistas que para alguns parecem antigos apesar de não terem passado por nós há tanto tempo assim... Gosto de ouvi-los não só pelas letras que falam de sentimentos tão intensos (e creio eu, inerentes à alma de qualquer ser humano), mas por perceber que eles sentem o que cantam, e de uma certa forma essa sensação me é transmitida, também sinto!
    As músicas (e tantas outras coisas) atuais não tocam da mesma forma, não por não terem um sentido, mas por terem sentidos tão vazios quanto à sociedade em que hoje vivemos.
    Adoro nostalgia! Adoro o antigo! Adoro esse tempo de experiências intensas e verdadeiras, muitas as quais não vivi, mas ainda assim anseio!

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  2. Larissa ,

    eu te entendo perfeitamente. o problema é quando a lógica da indústria pausteriza tudo, como se tudo fosse mercadoria, inclusive nossas sensaçoes e sentimentos

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