terça-feira, 31 de julho de 2012

Sobre pessoas e lugares

Ítalo Calvino em As cidades invisíveis fala dos múltiplos lugares imperceptíveis dentro das próprias cidades, e de outras que construímos dentro de nós. Assim, um turista ou viajante pode avistar e perceber coisas que os moradores apressados muitas das vezes não se dão conta. 

Fazer a travessia de barca Rio-Niterói é um desses exercícios para mim de revisitar a memória e de busca de novos olhares. Esse percurso trilho desde 1995, e é comovente refazê-lo. 

Em 2004, quando vim fazer a prova do doutorado, a travessia foi carregada de tensão, mas não menos de desejo de que aquela paisagem se repetisse em minha retina por um ano. Após o resultado, foi isso que se comprovou: acompanhado dos meus amigos Agenor Júnior, do Ceará, e Márcio Both, do Rio Grande do Sul, tais viagens, sempre na frente da barca, tendo o vento por companhia, constituíram-se num exercício do olhar à procura de novas facetas ao longo da travessia. 

Nossas retinas buscavam tudo: dos transeuntes apressados à procura do melhor lugar na barca, da silhueta de Niterói, do Pão de Açúcar no Rio, da grandiosidade da Ponte (Rio-Niterói – obra da ditadura militar), dos aviões que passavam por nossas cabeças como se nos escalpelassem e causassem a sensação de que iriam pousar no mar, do avistar do Cristo distante, sempre de braços abertos, da poluição da Baía de Guanabara, a mesma que Claude Levi-Strauss achou feia pois lhe pareceu uma boca banguela. 

Ontem, fui visitar minha amiga Lícia Cristina da Hora, que faz mestrado em Educação na UFF em Niterói. Conversarmos horas sobre política, o cenário eleitoral de São Luís, por sinal, empobrecedor, política universitária e nossas velhas trincheiras marxistas. Queríamos tê-lo feito na praia de Icaraí, mas o tempo nublado não permitiu. Não faltou, claro, o significado de novas paisagens na vida dela, morar em outro lugar, revisitar o seu lugar sobre outra ótica. 

Quando atravessei ainda do Rio para Niterói à tarde, levei minha câmera no afã de revisitar minhas imagens – memórias, fui surpreendido por uma nova barca; mais moderna; mais luxuosa – e que impede os usuários de viajarem na proa –, na parte de fora. Foi broxante. Depois fiquei sabendo que o preço da passagem subiu de R$ 2,35 para R$ 4,15. Houve manifestação, piquete e muito protesto. É um absurdo privar as pessoas menos aquinhoadas financeiramente de ir e vir pelo abusivo aumento de preço. Se eu estivesse lá fatalmente também protestaria. 

Na volta, já de noite, tive a sorte de pegar uma barca “velha”: a mesma que eu, Agenor Junior e Márcio Both pegávamos em 2005. Claro, fui para a frente pegar o vento, vendo as luzes de Niterói, do Rio, dos carros sobre a ponte, a baía poluída da Guanabara, o Cristo distante. Imaginei Agenor e Márcio ao meu lado e pensei no que falaríamos 7 anos depois, qual cidade invisível contemplaríamos nessa noite. Uma melancolia tomou conta de mim. Peguei o telefone e mandei mensagens para alguns amigos. Aquele momento era meu, mas eu queria compartilhá-lo. Dei-me conta quando cheguei ao Rio que estava me despedindo da cidade. Era hora de voltar para casa. Nesse exato instante, um avião passou sobre minha cabeça me escalpelando o couro cabeludo e me dando a sensação de que iria cair no mar. Sorri.  

Peguei um 415 Usina direto para Tijuca para a casa de minhas primas Eliane e Ellen. Motorista apressado, como sempre. Meus olhos buscavam a cidade: a Candelária com seus meninos mortos na calçada, o Centro Cultural Banco do Brasil, a Avenida Getúlio Vargas, as luzes, a pobreza, os contrastes, os mendigos e pedintes, “as meninas da noite”, as favelas, o camelódromo, a Marquês de Sapucaí, mesmo sem carnaval, iluminada, o Comando Geral do Exército. Transportei-me para 31 de março de 1964, golpe militar, exatamente durante o comício da Central do Brasil, do lado do Comando Geral.

Cheguei à Tijuca. Chovia. Era minha melancolia se despedindo da cidade. 

Qualquer dia eu volto. Até lá, vou enxergar outros Rios invisíveis dentro de mim.                          












         

domingo, 29 de julho de 2012

Um Jongo e um Tambor-de-crioula de Rua

Noite agitada, pulsante, transeuntes, música, agitação, gente, muita gente, carro, barulho. No traço arquitetônico de um Rio de Janeiro ainda colonial, hoje bairro boêmio da Lapa, todas as últimas quintas-feiras de cada mês, sempre à noite, acontecem o encontro de batuques da África, uma celebração de nosso passado não muito distante, marcado pelos embates da escravidão.  

Turistas nacionais e estrangeiros são atraídos pela força da evocação dos três tambores e pelo pulsar da dança. Em meio à uma arquitetura cada vez mais soft, convivendo com o passado colonial, exatamente embaixo dos arcos da Lapa, antigo aqueduto da região, passagem hoje para o bairro de Santa Teresa através do bondinho, os três tambores, ou do Tambor-de-Crioula, ou do Jongo, também cognominado de Caxambu, existe um caráter de uma sociabilidade que teima em resistir e não morrer. 

Antiga prática escrava, quer o Tambor-de-Crioula, originado no Maranhão, quer o Jongo ou Caxambu, região do vale do Paraíba, ambas as danças são coirmãs, diferença pontuada pela presença masculina no caso do Jongo. Ambas celebram a fertilidade da terra, a espiritualidade africana radicada no Brasil, a vida, o amor, a alegria, ritmada pelos tambores.  

Num mundo em que a individualidade dá o tom dos novos padrões de sociabilidade, as brincadeiras de roda, simbolizando o elo entre as pessoas, perdem o espaço, o padrão de consumo é o cartão de visita como elemento de persuasão e atração sensível, os códigos sociais de ilação nas cidades se esfalecem, elementos como o Jongo e o Tambor-de-Crioula em pleno centro cultural e boêmio do Rio de Janeiro tem muito a nos dizer. 

As danças são aglutinadoras, não excludentes. Não é preciso ter dinheiro para dançar, nem ser feio, nem bonito, apenas ser gente, sensível, entrar no espírito da dança e se deixar levar por uma atmosfera cada vez mais distante: a da relação entre homem-mulher-natureza.

Não à-toa que o ritmo cadenciado repete as batidas do coração, e o corpo não consegue ficar parado. É bem verdade que muita gente passa ao largo indiferente ao que está acontecendo, em busca de outras formas de sociabilidade, prazer, aglutinação, mas os que ali se quedam maravilhado com essa antiga prática escrava, rememoram um tempo não muito distante de que a dança era uma das poucas formas de integridade física e espiritual exercida pela luta pelos escravos, logo, era uma forma de resistência. 

Resistência hoje repetida pelos que ali brincam, dançam, celebram nos dias de hoje, quintas-feiras, embaixo dos arcos da Lapa. A escravidão acabou, a opressão não. 

Festas, segundo Bakhtin, são uma das formas de incorporação, exclusão e/ou inclusão/exclusão ao mesmo tempo, ou seja, nas festas existe uma representação das categorias de classe existente nas sociedades muito bem estandartizadas nas roupas, modos e locais de participação. Vide exemplos como: quadrilhas, carnaval, micaretas, etc. Nessas manifestações, as categorias sociais estão muito bem divididas. No entanto, as festão também são formas de subversão, vide, de novo, o caso do carnaval: homem se veste de mulher, rico de pobre, pobre de rico.

Há festas que são a própria concepção da inclusão, Tambor-de-Crioula e Jongo são dentre outras, exemplos. Qualquer um pode se aproximar, ouvir, dançar e sobretudo, dançar. – Mas eu não sei dançar jongo? Basta respeitar o momento certo de entrar; quando um outro casal ou parceiro se despede, ou, quando gentilmente o convida para dar a vez. É democrático, é cadenciado.

Abra os braços, no caso do jongo, convide uma parceira, não dispute com ela, seja cortês, acompanhe seus movimentos, se aproxime e se distancie respeitando a sonoridade-espiritualidade dos tambores. Pronto. A vida está ali sendo celebrada, pois que é feliz, extremamente feliz. 

Quando vejo rodas de Tambor-de-Crioula e de Jongo, dentre outras manifestações, eu me sinto renovado. O mundo é cada vez mais dissociado, mas existem formas de resistências. Os antigos escravos resistiram. Eles venceram... Hoje, re-ritualizamos suas antigas práticas. 

A vida é mais. Celebremos a vida. 


quarta-feira, 25 de julho de 2012

O prazer de escrever



Com um caderno de anotações de uma estampa linda, grafos de Bukowski, rabiscos a mão colorida que ganhei de minha amiga Patricia Luzio, exatamente para essa atividade, rabiscar o que vier à mente, escrevo.

Estou sentando na rodoviária do Tietê em Sampa, esperando meu ônibus para o Rio de Janeiro. Caneta à mão, seguro meu lindo bloco de anotações após ler alguns capítulos do maravilhoso livro "Escrevendo com a alma: liberte o escritor que há em você", um best seller de Natalie Goldberg.

Não à-toa virou um best seller. Ela afirma que escrever é como meditar, e de cara concordo com sua percepção sobre a escrita: escrevemos para dar vida àquilo que mais nos aturde. 

O relógio avança nas horas. A moça do serviço de autofalante com sua voz melodiosa por vezes me atrapalha, é a primeira vez que escrevo nestas circunstâncias. 

Estou seguindo o receituário de Goldberg: escreva. Deixe seus dedos correrem sobre o papel, sem censura, sem medo, sem receio. Solte a imaginação. 

A voz da moça do autofalante de novo! Ao menos não me deixa perder o ônibus, pois estou entretido na escrita, interrompendo inclusive o próprio manual de como escrever.

Talvez o sentido desta crônica seja dizer aos meus leitores deste blog que me sinto igual a você: cheio de vontades, de desejo de escrever compulsivamente, mesmo sem saber, com minhas inseguranças e incertezas. 

É talvez um sentimento de autoidentificação. Ao falar de mim, possivelmente falo de algo que está em vocês. O desejo não é apenas meu, caso contrário, vocês não teriam chegado até esta linha. Então, incentivemo-nos. 

Entretanto, com a palavra, uma ajuda da Goldberg sobre quem quer escrever. 

a) Mantenha a mão em movimento;
b) Não rasure;
c) Não se prenda a ortografia, gramática;
d) Solte o controle;
e) Não pense. Não tente ser lógico;
f) Pegue na veia. 

A primeira vez que fiz essa viagem de travessia entre Sampa e Rio de Janeiro foi em 1995. À época, um estudante de graduação em História, cheio de sonhos. Hoje, não sou mais um estudante de graduação, mas continuo em busca dos meus sonhos. Sou um eterno mutante. E sonhando.

Meu ônibus chegou. Comecem a viagem de vocês.  


domingo, 22 de julho de 2012

Liquido e quase certo


(Henrique Borralho e Patrícia Luzio)

Escopo abaloado
largo transparente
estreitando-se ao final
um líquido seminal escarlate

É de ocean
é de oceano
transportado por mares
inebriando os navegantes

Rodopiando tantas palavras
cegas e mudas
tateantes 
em busca de lugar para se sentar
e ficar

Se chacoalhar
mexe
Se parar
enlouquece

As palavras saltam do escopo fino e abaloado 
para dentro de um recipiente 
cheio de gente
querendo dizer 
o que o pensar reto 
não abriga

Sinuosamente, talvez
Não tem seta 
nem direção
só efusão
emoção

Se mistura com o fio leve 
subindo sorrateiramente
rabiscando linguagens indecifráveis
faladas por aqueles que vão 
nas enxurradas sem endereço
mas sabidos que algo haverá por ali.


Descompasso


(Henrique Borralho e Patrícia Luzio)

Um tambor 
cheio de gente em notas

Uma força da natureza
um mosaico ambulante
de vozes nodosas
que quero tocar
mas não dá...
dedos curtos...







Nós

O copo na mesa mostrava que havia um querer dizer ali
A tábua estreita não polida suportava o peso da existência
deles dois, amigos de profundezas agora querendo submergir
talvez até boiar – ai, ai, risco da superficialidade??
Não. Tábua estreita não polida
suporta o peso da existência.



Cacos em Melodia


(Henrique Borralho e Patrícia Luzio)

Ela entrou e quebrou todos os pratos 
de coleção 
cacos ancestrais
espalhados pelas tábuas do chão

Era colérico. 
Um senão, 
um aviso, um alerta:
daquele jeito, não!

Nem mais prato ou coleção
nem mais nada organizado 
como se fosse uma exposição

Agora eram pedaços a se recompor
Melodias em aberto
à espera de um gesto de união 
para novos mosaicos.

Começar por onde? 
Pelo próprio olhar que virou pó 
junto aos cacos.



Um Traço de Moldura


(Henrique Borralho e Patrícia Luzio)

Buscando a moldura do quadro
escorreram-se as tintas
formando um borrão que
a olhos curtos
apontavam para suas mãos
escorrendo lentamente
desenhando retrato em branco e preto
num quadro em que os dedos desenhavam
o que a mente imaginava:
uma paisagem úmida, 
indescoberta
uma claridade cegante
que obriga seus olhos 
a se fecharem 
para enxergarem algum possível traço
um simples fio que remeta àquilo 
que mais desejava.


La Petite porte


(Henrique Borralho e Patrícia Luzio)

Não, não!
É de quebrar e refazer
montar e desmontar
bater e correr

Nem isso arranca
a esperança estampada 
em desenho de flores
num manto preto iluminado 
por faróis claros 
e pedras de mel

Naquelas fotografias
vejo um resumo de tudo
sonhado em noite curta
sobressaltada
noite de espera
por algo que já se sabe 
vindo,
talvez até já vivido.

Das reminiscências das portas
vejo tantas que se abrem
mesmo aquela que 
com cadeado
foi aberta para caber 
em tua mão

E agora esta porta se transforma
em mais uma janela de fundo
lilás
por onde alcanço
teus olhos líquidos
que me buscam 
do outro lado do rio

Atravessa!
Por onde?
Busca as cordas!
Joga-as!
Não as tenho...
Terás de des-cobri-las..





Terceira Margem do Rio


(Henrique Borralho e Patrícia Luzio)

Uma homenagem a Kátia 

Combien de temps? 
Uma semana, um mês, uma vida?
Quanto é necessário 
para se revisitar o tempo?
Uma semana?

A experiência da terceira margem do rio.

Encontro-desencontro
pois não há ponte
o rio é fundo
restando galhos secos quebráveis
cansados de servir de apoio.

Costuro minha vida
esgarçada por tantas mãos
conhecidas e desconhecidas
lá das outras margens

Agora digo não
vou sem mão mesmo
pois restam meus pés

A terceira margem 
não é o ontem
ferido e dilacerado
nem mesmo o ontem 
eufórico
também não é o presente
um quadro branco a se constituir

Possivelmente um amanhã
em que nem a borda extrema longa
nem a outra, 
longa e estreita:
a terceira está a se constituir

Respiro fundo 
porque o ar me escapa 
sem minha permissão
aliás, falta ar!




Tarde em Fúria

(Henrique Borralho e Patrícia Luzio)

Conforme eu avançava, a calçada encurtava. E lá longe, um céu azul varrido de laranja-ocaso.

Transeuntes, andarilhos, uma bicicleta-cinema projetava um desenho rabiscado de meninice no vidro da minhoca de metal que corta a cidade. 

Escadas que sobem e descem, gente que vem e vai sem se dar conta de que talvez suas vidas estivessem projetadas naquela tela-improviso.

E de repente, avisto aquela anca, talvez a mais fascinate que já vi, pelo volume e cadência num molejo musical – nem precisava ver o resto que a portava, só ela me chamava os olhos, indo e vindo.

Do outro lado, pari passu à anca, um morador de rua arrumava sua cama, embolando pilhas de papelão para suportar o frio do dia e das pessoas que não lhe aqueciam a alma, nem a pele.

E a menos de cem metros, outro faminto – menos de comida do que de olhar – chafurdando o lixo. E vi que ali havia restos consideráveis, mas não para ele que os lançava pelos ares como quem diz “não é deste alimento que meu corpo tem fome”.

Quem se importa? O trânsito é frenético, as luzes se acendem à noite, e a pressa não é menos veloz. 

Os afazeres dão a tônica do caminhar. Os passos rápidos não permitem saber quem tem ou não fome. A fome é interna; o frenesi, externo. 

Um chamado me acorda: "volta pra casa?". Estranho: ninguém me espera onde lá, também chafurdo meu lixo, em busca de uma calma impossível de existir ali.





sexta-feira, 20 de julho de 2012

Poema a Quatro Mãos


(Patrícia Luzio e Henrique Borralho)


Esse exercício a quatro mãos
eu sempre quis fazer
sem saber quando
e onde

Agora sei:
ele sempre esteve na vontade da palavra existir
no desejo de ser
ser não sei quem
nem onde

Algo em devir
que começo a endereçar aqui
nestas páginas fantasmagóricas
porque daqui sei
que algo virá

O algo já está:
a fantasmagoria
num devir substanciado
já corporificado
na grafofagia dos rabiscos e arabescos
deslizando na página em branco
salpicada de grafite encarnado.












Sebastião no Telhado

(Patrícia Luzio e Henrique Borralho)

Ele sempre esperava o sol esfriar, assim poderia subir no telhado e, de frente para o céu, contemplar o ocaso, o início do estimpar das estrelas e a força de outra luz – a da lua.

Este era o momento mais mágico do dia, e temia que um dia deixasse de ser o da sua vida. Rogava por permanecer ali até se tornar céu, estrelas, lua e telhado. Não queria perdê-los, não queria se perder. Entretanto, há tempos ouvia dizer que era inexorável...

Aqueles instantes eram indizíveis, indeléveis, quase intermináveis. O lugar era seu, único, singular. A vida em suspensão. Estar no telhado era ficar mais próximo do céu e distante de tudo. 

Mas, haveria de descer. Não havia outra direção, afinal. Nem sentido. 

E, à sua frente, a saga: re-unir-se em telhado e chão duro, céu e terra úmida. A lua haveria de ser decifrada. Quem sabe cantada?

A descida era quase sempre uma espécie de morte re-vivida, um espaço intermitente para uma nova subida. 

Os anos se passaram e de sua autista criatividade, aprendeu a subir sem morrer, gargalhando, desafiando aquela morte revisitante, construindo o saber-coser um fio de aço invisível que mantivesse o telhado dentro, e não mais lá fora, no alto. 


Sebastião ergueu seu próprio telhado.

Pernas de Coser

(Patricia Luzio e Henrique Borralho)

Naquela casa de madeiras pálidas, mais aquosas do que propriamente sólidas, ela fabricava algo com seus dedos assustados da noite anterior.

Era de coser, era de coser. A cadeira lentamente ia para frente e para trás, num movimento sinuoso, pendular como a balança do tempo em suspenso.

Algo nela se calava, mas outro algo gritava: queria desaparecer dali. Casa apertada, gente apertada, e ela ali, encolhida em sua cosedura para, quem sabe, algo de novo se alinhavar.

De onde vinha o infortúnio com a pequenez do lugar? O que era aquela claustrofobia? Vontade de viver? Ou de não morrer? 

Algo nela sabia que o mundo dançava num ritmo mais acelerado que o movimento de sua cadeira.

Carolina assim se punha: a filha mais velha (bem velha) em corpo andrógino, membros finos quase quebráveis. Era ela, a menina da janela que via o tempo passar. A mesma que outrora, meiga, doce e ingênua, com o passar do tempo transformou as horas em auguras das batidas do relógio.

De sua vida claustrofóbica, só queria escapar, esvanecer. Tão pequena e já se sentia pó. É que a velha nela imperava, os anos se passando por detrás da janela, e nem um fio ela alcançava que pudesse arrastá-la dali. Por isso cosia – quem sabe era aquele o fio?

O fio era intuição de que o melhor não poderia estar ali. De sua cadeira, avistava pela janela o quadro por onde a vida a enxergava. Mas algo nela sabia que a paisagem da vida era maior que o quadro de sua janela.

Quantas vezes sonhou estar rasgando em voo aquela paisagem rumo à sua vida, ainda em espera por ela? Quando é que aterrizaria? 

A angústia lhe apertava a mão e, de tão teso o coser, escorria-lhe sangue pelos dedos. A cólera contida se revestia no desenho do tecido ilegível. Coser já não era fazer algo: era não fazer nada, porque o nada era o único horizonte.

A janela se fechava e a paisagem ia ficando taciturna. Mesmo assim, algo nela respirava e suspirava pelo diferente do mesmo, um sopro-pedido-de-socorro à sua alma escondida pelo tempo que escorria pela janela. E este sopro ínfimo ela sorvia com todas as forças de seu lânguido corpo, fazendo-o pulsar até não poder mais se esquecer de que ela ainda existia. É possível.

Foi então que se levantou da cadeira e, em vez de olhar o mundo pela janela, Carolina escancarou a soleira da porta arrastando o fio que cosia. E, à medida que andava, aquela trama já não fazia mais parte de sua vida, o novelo de lã se esmilinguia, findava-se, e sua vista só alcançava a imensidão do mundo, sem nenhuma saudade dos tempos da cadeira de balanço.

Suas pernas davam a nova cadência: agora para frente, não mais para frente e para trás, sem sair do lugar.


Um Poema (Quase) Real

(Patrícia Luzio e Henrique Borralho)


Onde está o Real?
Podes me mostrar?

Imagina-o no interregno
entre o ser e o ter que ser,
entre a espera e a experiência.

Não acredito!

Não seria em outro lugar?
Naquele menos imaginado
menos visto
menos traduzido?

Não seria o Real
o sopro daquele vento nos corredores?
Meu fio de cabelo branco?
Teu sorriso dentado?

Sim e não.
É e não é.
Ele está onde queremos que esteja.

A palavra desenha coisas impensadas
que agora acontecem neste poema.

É Real?


Sangue Branco

(Patrícia Luzio e Henrique Borralho)


E o sangue
vem de mim
na lembrança daquela linda figura
branca branca
atrás da janela

Um sorriso estampando
algo indizível
que queria tanto existir
que pequenas letras
se formavam
na umidade da janela

O sangue:
a verve paladina
o correr nas veias
trazendo em cada tecido do corpo
o ter sido
o existido
o sentido

O sangue
carrega as lembranças
o refazer da memória
o oxigênio da metamorfose

Memória que não descansa
que sempre recorre
e acode
nos sonhos impedidos
de acontecerem

Mesmo assim
lá está ela
colada à janela

O olhar
a memória
buscando algo:
talvez um outro?





quarta-feira, 18 de julho de 2012

três lanças

Nas noites escuras em Magred quase sempre é um risco sair à noite. Mas quem pode se furtar de curti-la nessa cidade que pulsa? Nem mesmo os ladrões, beneficiários da vida frenética, usuários da noite veloz. 

Certa feita, caminhava um grupo de jovens alegres e distraídos, cantarolando e sorvendo a intrepidez de não se preocuparem com os perigos. Sem se darem conta, no fluxo contrário, vinham três homens aparentemente inocentes que se aproximaram lentamente. Num átimo de segundo, os três sacaram três lanças pontiagudas e grandes em direção ao grupo. Tratava-se de um assalto. Sem reação, todos entregaram suas carteiras, documentos, mas Marval, o maior de todos, conseguiu fugir deixando para trás sua amiga Nania. 

Desesperado, correu como um lince à procura de ajuda. Sua respiração ofegante não condizia com a velocidade muscular de suas pernas que mais lembravam um tropel de cavalos selvagens fugindo de uma caça. O raciocínio lhe fugia à cabeça, a vista escura, o coração a saltar pela boca. Seus olhos percorriam por todos os lados à procura de alguém que pudesse ajudá-lo, quando sua mente se lembrava o que poderia estar acontecendo com Nania. 

Dobrando a esquina da rua Alcate, encontrou um grupo de policias de plantão. Quase sem conseguir falar, esbravejou seu medo e pediu desesperadamente que corressem em busca de sua amiga e dos ladrões. Subiram no carro e foram atrás, com muita sorte conseguiriam encontrá-los. Depois de percorrer becos e vielas, encontrou o grupo acuado e os ladrões com suas lanças em riste apontadas para eles, inclusive uma delas para Nania. 

Os policiais deram voz de prisão, resistiram, um deles sacou da arma e disparou em direção a um dos assaltantes ferindo-o na perna. Os outros fugiram. 

Marval, ofegante, estende suas mãos para Nania tentando levantá-la, consolá-la por nada de pior tê-la acontecido. Nania não conseguia disfarçar a decepcão com Marval, não olhava nos olhos dele. Até a casa de Nania reinou um silencio sepulcral, nenhuma troca de olhares, nem um comentário, nada. 

Ao chegaram à porta da casa de Nania, ela comentou que na noite anterior havia sonhado com três cobras embaixo de sua cama e que também no sonho Marval não conseguia protegê-la; para ela, um sinal.

  Três cobras, três homens, três lanças Marval, e você sempre por perto, sempre fugindo. Adeus Marval. Bateu a porta



domingo, 15 de julho de 2012

amigos-irmãos, irmãos-amigos

Uma poesia em homenagem a todos os meus amigos-irmãos, irmãos-amigos, em especial à Ana Cristina, a Aninha, que depois de uma semana em São Luis acaba de voltar para Maringá, no Paraná


Da distância que tudo espera
à certeza de que a vida não encerra,
dos percalços que se atravessa
ao guinar da fronte sincera,

A mão estendida mesmo no vácuo
é a mesma prostrada sempre no ato,
Não se espera que os amigos sempre nos entendam, 
mas sabemos e esperamos que nunca nos abandonem,
Da dor no peito latejante
o sofrer acolhido pelo ombro largo e pronto,
Dos conselhos e conversas amargas, 
o doce sal a boca tempera

É preciso amigo ter,
pois sozinho ninguém chega,
sozinho não se é feliz,
para que ser feliz sozinho?
ter amigo é não carregar a sacola da vida sozinho,
cheia de sombras, pesada demais

Um olhar, uma percepção,
uma ligação, um afago, afeto,
uma lágrima compartilhada,
um abraço, uma mão,
uma canção, uma vibração,
uma lembrança, esperança,
amor, devoção, atenção 





sexta-feira, 13 de julho de 2012

Sobre linchamentos públicos em São Luis

Ao buscar minha secretária em sua residência no bairro do Coroado, proximidade de onde moro, deparei-me com uma pessoa atônita, perplexa com o que havia ocorrido na noite anterior: mais um linchamento público contra um ladrão apanhado em ato ilícito. Como de costume, apanhou muito, quase foi a óbito sem a menor interferência do poder público, revelando o estado qual se encontra a nossa sociedade. 

A questão do linchamento é uma prática mais corriqueira do que se possa imaginar em São Luis, acontece praticamente todos os dias, revelando o alto grau de instabilidade e de descrédito quanto ao poder público no estado do Maranhão. 

Lembrei-me da apresentação que fiz do livro do Profº Yuri Michael Pereira Costa, fruto de sua dissertação de mestrado, que passo a transcrever abaixo, relatando e analisando exatamente a questão dos justiçamentos feitos na cidade de São Luis, o trato da coisa pública e como setores da impressa abordam a questão.   

Quando terminei de ler A outra justiça: a violência da multidão representada nos jornais (2008), algumas questões acerca da cidade de São Luis me vieram à mente. Uma delas é que os linchamentos — que continuam ocorrendo rotineiramente nos bairros da periferia desta cidade —, quer sejam os que o autor cognominou de “justiçamento coletivo” ou “alternativo”, enquanto simbolizações da ausência do poder público nestas áreas e ritualizações da emergência de um tipo de organização social, para além da repressão ou controle do estado, quer sejam os que o autor coloca como ponto de partida para se pensar a questão da violência a partir dos linchamentos. 

É que a máxima da oficialização da violência sob o controle do Estado, já descritos nas obras de Rousseau, Hobbes, Thomas More, Weber, Durkheim, e mais recentemente em autores como Hannah Arendt, Norberto Bobbio, Norberto Elias, entre outros, precisa ser acrescentada a partir da visão de Baudrillard, Guy Debord, Enzenberger, se quisermos entender o “espetáculo” da cobertura jornalística feita a partir dos diários de São Luis durante os dez anos da pesquisa, 1993-2003, como o autor bem o fez, não apenas como representação da violência a partir dessa mídia, mas o quanto tal representação está repleta de uma “ética da violência”, “estética da violência” e “violência enquanto estética”.

A “ética da violência” é resultado da forma como o Estado através das suas políticas públicas tratou, dentre outras questões, do crescimento desordenado da cidade, seguido de sucessivos êxodos rurais, sobretudo a partir da década de 70 do século passado. O êxodo é fruto da violência do Estado perpetuado pelo tratamento dado a essas pessoas, já residentes na capital do Maranhão. Nessas áreas, que se constituíram enquanto micro-cidades dentro de  São Luis, os “justiçamentos coletivos” ou “alternativos” eram e ainda se constituem enquanto uma “ética” implementada pelos moradores como legitimação, organização, controle e resposta, quer para o Estado, quer para quem transgride as regras de conduta social, transformando e construindo novas sociabilidades.  

A questão emblemática é que tal violência perpetrada pelos moradores dessas áreas àqueles que cometem algum delito resultante nos linchamentos, não se constitui como questão isolada como se os demais moradores da cidade observassem tais ações enquanto paisagem da pobreza taciturnamente, sem que o chamariz das reportagens dos jornais locais não retroalimentassem a “estética da violência” por detrás de toda a estratégia da redação como forma de atração de um tipo específico de um público leitor e consumidor de tais matérias.

Nisto reside à violência enquanto estética. A estética da violência utilizada pelos Jornais deita suas raízes no fascínio que as matérias provocam, no conteúdo das discussões internas de uma equipe de redação, no que compõem a formatação dos jornais, na participação direta ou enquanto espectador dos linchamentos, na naturalização ou banalização de tais atos. Aliás, não se trata de dizer que a violência estética dos linchamentos é uma naturalização ou banalização da violência, mas o quanto a atração midiatica para os atos de justiçamento são em certa medida uma sublimação de tantas outras formas de violência, quer simbólica, quer física que os moradores da cidade de São Luís cometem todos os dias.

O problema é que existe uma banalização da violência, a tal ponto da população se achar no direito de fazer justiça com as próprias mãos, ou seja, um retorno ao estado de barbárie, do período pré-moderno, da constatação de que a população não respeita, acredita ou se sente representada pelas estancias burocráticas do aparelho estatal democrático. É um verdadeiro Deus nos acuda, salve-se quem puder.

Existe sim a dignidade humana e condição ôntica, física de qualquer transgressor que precisa ser amparado por lei. O total desrespeito a isso é a comprovação de que a vida não é uma questão amparada pelo estado de direito, e sim, que tal estado sequer é compreendido por segmentos sociais. A bem da verdade, em alguns bairros de São Luis estado é sinônimo tão somente de repressão policial.

Minha secretária de uma forma afirmou que isso é uma prática comum, ou seja, é um aviso ao próximo infrator do que acontecerá com ele caso seja pego. E a falência do tecido social.
 
Experimentem passar por uma banca de jornal e leem suas manchetes. A sacralização/banalização da violência é a constatação da ética da violência. Quando a ética é a violência é sinal de que algo está muito, muito errado. Ética não é isso.                 

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Do lugar da reflexão nos dias de hoje

Ainda há espaço para um tipo de reflexão filosófica nos dias atuais? Mais do que nunca, mesmo com tanta assoberbação de informação, justaposição de sentidos, linguagens, imagens, esgarçamento coletivo, perda de uma ideia de sentido social.
  
Há autores que defendem que a própria noção de humanidade e toda derivação oriunda disso é uma construção discursiva, tal como a vida, a humanidade, a cultura, a igualdade e seus correlatos. Mas a questão é: se é uma invenção, por que se inventou dessa forma e não de outra? Há respostas plausíveis do tipo: porque um grupo majoritário, dominante, construiu sentidos sociais de dominação simbólica e pelo ato da imposição e repetição transformaram-se em lógica de dominação social. É pura verdade. 

Os códigos sociais de dominação são sempre constructos dos tipos dominantes de uma sociedade, mas isso nunca encerrou a busca, eis por que tais códigos nunca se perpetuaram. Cabe então uma outra contra-argumentação: os códigos de conduta moral mudam porque os grupos se alternam no poder, logo, seus valores sobrepujam ao do grupo vencido. Mas por que passados 8.000 anos de civilização humana, excetuando-se os grupos dos hominídeos, tomando como premissa apenas uma noção de organização social pautada no ordenamento urbano, atrelado pelo estado e por uma sociedade complexa, não há uma convicção sobre o que queremos e mesmo com tanta informação nos sentimos desinformados sobre tudo? 

Nietzsche criticou Sócrates e Platão acusando-os de serem os responsáveis pela morte da filosofia; para ele, a verdadeira filosofia era a pré-socrática. Sócrates está sendo retomado. Parece-nos que a ultramodernidade não suporta a noção de hiperindividualidade. Os renascentistas cognominaram a idade média de “trevas”, hoje sabe-se que a modernidade nasceu no medievo e muitos avanços técnicos e científicos estavam brotando e latentes nesse período.

Anunciamos o alvorecer da tecnologia como suprassumo da inteligência humana; hoje, nos tornamos visceralmente dependentes da tecnologia e nem por isso somos autônomos. A tecnologia, que era para emancipar, como frisava Platão sobre as ceifadeiras do campo (o homem será livre quando as ceifadeiras fizerem nosso trabalho), tornou-se uma nova forma de prisão. O positivismo havia apregoado que a etapa última da humanidade era o estado científico, positivo; o século XX mergulhou numa profunda crise paradigmática vendo emergir a pós-modernidade, pletora negação do cientificismo como arauto da felicidade. 
   
Se tudo está automatizado, se efetivamente as utopias morreram, se os valores morais são démodés, se a política é um balcão de negócios (para Hannah Arendt fora da política só existe a barbárie), se tudo é voraz, frenético, há mercadologização de tudo, inclusive dos afetos e do pensamento, então, qual é o lugar de um tipo de reflexão filosófica, por exemplo, para uma sociedade ultramoderna que não quer se pensar enquanto tal? Exatamente a ausência de reflexão é o primeiro sintoma do mal-estar civilizacional e da esquizofrenia coletiva no pior sentido, aquele que julga que não pensar é melhor do que pensar. 

Isto não é uma defesa da civilização, muito pelo contrário, as civilizações que nos antecederem servem como painéis do que não queremos, mas até para sabermos o que queremos, sem ainda sabermos, a reflexão é necessária. Caso contrário, prevalecerá a lógica do capital voraz que torna tudo objeto do consumo, portanto, qualquer padrão de sociabilidade é mera esfera da relação mercadológica, isso sim, a mais pura idiossincrasia humana, a mais perversa forma de alienação, exatamente porque exclui qualquer possibilidade de reflexão. 

É a reflexão que nos situa, inclusive para criticar a própria lógica de reflexão, ou seja, utilizamos os aparatos conceituais do pensamento para criticar o próprio pensamento; vide o caso exemplar de Nietzsche.  

Claro também que a noção de reflexão precisa ser ampliada. Não cabe mais apenas um aparato cartesiano, dentro de uma lógica apenas racionalizante, pautada numa metódica forma de pensar; vide o instrumental ocidental que excluiu, pelo pensamento, qualquer lógica de raciocínio que não fosse a dela, obtusidade do pensamento. 

Esse tipo de reflexão de fato não cabe mais. O pensamento não pode ser instrumento simbólico, capital cultural, de distinção social pela notoriedade (como bem frisou Bourdieu). Não pode servir para explorar e oprimir, só serve para se compartilhar, emancipar.

O que assistimos hoje é a um esgotamento de dois modelos antitéticos de se encarar a reflexão. O primeiro, a exaustão de uma reflexão racionalizante demais, autocentrada nos paradigmas de um modelo ocidental de pensamento que abastardou outras formas de se conhecer e se relacionar, que segregou outras formas de inteligência, que serviu em última instância para notarizar ainda mais a própria reflexão, ou seja, virou uma metalinguagem, um discurso autorreferenciado que garantiu lugar de sobrevivência dentro dos meios intelectualizados. O outro, é exatamente seu oposto, a noção de que refletir não leva a nada, portanto, a negação da própria reflexão.

A exaustão da ideia de que refletir não leva a nada é um desdobramento do pensamento estéril, muitas das vezes longe da vida, verborrágico, hermenêutico demais, prolixo, cuja sustentação se assenta muita das vezes na própria linguagem, e a linguagem é um instrumento para se pensar a vida.

Há a necessidade urgente de se repensar o que ensinamos em sala de aula, por que, para que e para quem, o que escrevemos, e, sobretudo, redimensionarmos a reflexão num âmbito que abarque outras formas de saber, incluindo-se o sentimento, a percepção sensitiva, a dimensão social, instância substancial de nossa existência, não há vida pairando no ar, existe sim uma realidade material fomentadora inclusive do próprio pensamento; vide Karl Marx.

O que está em xeque não é a reflexão, mas como se pensa, como se colocam as questões, afinal, a racionalidade é uma dimensão humana, demasiadamente humana.

Mas a questão não é o excesso de reflexão, ninguém pode controlar o pensamento, as ideias, as pulsões do próprio pensar, e sim, o esgotamento de uma concepção utópica da existência construída pelo pensar, a desistência de que pela reflexão é possível uma sociedade mais igualitária, menos injusta, mais equânime, equilibrada e menos esquizofrênica. Esquizofrenia é uma dimensão humana, porém, quando atinge patamares sociais elevados torna-se instrumento de tirania, de opressão, de ultraviolência, porque a única dimensão possível nesse estágio é exatamente o descontrole, patamar perigoso da própria condição humana; vide o autoritarismo nazista.

É preciso pela reflexão desconfiar de tempos sombrios, quando aparecem discursos panegíricos que simplificam a vida, tornando tudo banal. Se tudo é banal, então não existe absurdo, tudo é legítimo e aceitável, e nem tudo é legítimo e aceitável. Estamos vivendo tempos sombrios, o desaparecimento das utopias humanas. Se não há utopia, se não há solidariedade, se não há reflexão, o que liga a condição humana?

Mais do que nunca é preciso desconfiar de toda proposição em defesa da antirreflexão Mais do que nunca a filosofia está viva. Nunca desconfiemos da capacidade humana de se reinventar. Estejamos a postos, mas sem perder a docilidade, beleza e simplicidade da vida.


Entrevista com Arton, de Sirius. Parte II

  Entrevista realizada no dia 14 de fevereiro de 2024, às 20:00, com duração de 1': 32'', gravada em um aparelho Motorola one zo...