Todos os encontros com Flavio Lazzarin são especiais. De
estatura mediana, fala grossa e baixa, ligeiro sotaque lombardo, fino
gosto gastronômico, afetuoso, sensível, dorido pelas causas sociais,
Flavio é um daqueles sujeitos do Brecht que não desistem nunca. É essencial.
Chegado ao Brasil nos idos da década de 80, quando o próprio afirma que o país
era outro: ainda idílico, ingênuo, utópico, se apaixonou pela terra brasilis e por aquilo que a Europa já não tinha
mais, um mundo rural ainda não totalmente contaminado pelo grande
capital.
Quando nos encontramos na última quinta-feira, dia 19 de
abril, dia do índio, logo ele, um etnógrafo, um defensor desse grupo, num bar
da Lagoa, de pronto colocou sua indignação ante o que classificou como
recrudescimento do Supremo Tribunal Federal em relação às conquistas
quilombolas. É que os conservadores, retrógrados, do DEM
(Democratas), entraram com uma ADIN (ação direta de inconstitucionalidade) em
relação às garantias da Constituição de 1988 reconhecendo territórios
quilombolas e de comunidades tradicionais. Flavio se ruborizou.
Quando aqui chegou, de imediato filiou-se às lides da CPT
(Comissão Pastoral da Terra) e onde milita até os dias de hoje. Foi um dos
responsáveis no Maranhão pela formação de um grupo de jovens pesquisadores que
passaram a estudar as ações da CPT, dentre eles, Wagner Cabral da Costa, hoje
professor do Departamento de História da UFMA. De lá para cá, suas ações
políticas nunca cessaram. É um apaixonado, empedernido pelas condições
campesinas no Brasil.
Não é de hoje nossas conversas em suas varandas sobre a
situação política no mundo, sobremaneira a brasileira. Sempre que nos
encontramos vão fios de hora em que criticamos esse ou aquele político, essa ou
aquela prática pública, essa ou aquela possibilidade de ação que se reverte em
esperança..
Conheci-o em 2009 pelas mãos dos meus amigos italianos Anna
Casella e Cesare Paltrinieri, que por sua vez, me foram apresentados pelo
também italiano, amigo-irmão, Claudio Zanonni. Sempre que estão no Brasil, Anna
Casella, Cesare, Zanonni, este último residente no Brasil, já naturalizado, e
em companhia de mais amigos nos reunimos, sempre à mesa, para discussão de
política, sobretudo ela.
Nesse último encontro do dia 19, me disse muito
triste que o Brasil foi o melhor laboratório da experiência capitalista
ocidental; não foi nem Estados Unidos, nem a própria Europa. Nesses lugares as
coisas foram se dando abruptamente; aqui não, existia uma certa resistência
popular e cultural, além de obstáculos políticos, por isso, a elite brasileira
em consonância com o grande capital ia testando novas fórmulas de dominação,
novos aparatos sociológicos. Enquanto a elite brasileira admirava a Europa e os
Estados Unidos como mecas de consumo, a Europa olhava o Brasil para saber dos
possíveis rearranjos do capital como zona de transformação.
Disse a ele que tinha a mesma sensação com o Peru. A
impressão que me passa é que esse país, guardada as devidas proporções, é o
Brasil da década de 80, vivendo os conflitos entre o tradicional e o moderno, a
identidade indígena e a pasteurização dos costumes, a preservação de práticas
comunais e a chegada do turismo vociferante, um pé no passado e os olhos para o
futuro. Lima é um enclave: uma cidade com 19 milhões de habitantes com
todos os problemas de uma metrópole e um interior ainda de traços incas. Como
aquele país vai resolver esse dilema não sei, mas algumas fissuras sociais já
estão bem à mostra.
Como também o Brasil está passando por esse processo,
embora bem antes do Peru, estamos neste exato momento assistindo a seus
desdobramentos. É disso que o Flavio lamenta: a opção pelo agro-business
matando florestas, práticas comunitárias, vidas simples, sem o devido respeito
sobre as pessoas que habitam nesses lugares secularmente, além da capitalização
política em Brasília cujos interesses não são da população, mas dos
conglomerados nacionais e internacionais. Mais do que nunca, a política se
transformou num balcão de negócios, por isso os conflitos sociais saltam aos
olhos. O ciclo capitalista de consumo chegou de vez ao Brasil e deve durar uns
20 anos.
Como bom italiano, não poderia deixar de mencionar a saída
de Berlusconi, sua indignação com a Liga Lombarda: fascista, separatista,
xenófoba, que pretende, além da separação da Itália do Norte da do sul, a expulsão
de africanos, latinos, congêneres.
Sua análise sobre o governo Dilma não é animadora. Ambos
concordamos que no ano que vem, quando os ventos da
crise econômica efetivamente atingirem o Brasil,
os índices de popularidade vão cair bruscamente, além do fato de que
para ele, Dilma não tem projeto de governo; governa no varejo.
Foi então que depois de tanta análise dura e crua
sobre as condições políticas na Itália e no Brasil, me
pediu que o levasse para o bar do Léo. Queria reviver aquele espaço de saudade
onde algumas vezes desenhamos um mundo melhor regado a boa música brasileira.
Confidenciou-me que em sua juventude ouvira muita MPB,
passaporte brasileiro para difusão dessa cultura no mundo. Quando aqui chegou
se inteirou das novidades musicais e guarda pérolas do nosso cancioneiro. Foi
aí que começamos a falar da vida no sentido dos terrenos dos afetos. A vida é
amor, o resto são adendos.
Disse-me que ao longo de sua jornada viveu várias vidas em
uma só e que o balanço é positivo. Isso só é possível quando temos a
certeza de termos sido dignos conosco e com os outros, quando levamos a vida
com inteireza e integridade, fiéis ao que acreditamos, cônscios dos
nossos papéis sociais e políticos, encaramos a beleza da vida. Só me restava
sorver a maturidade daquele homem-jovem com vigor e vitalidade de dar inveja a
muitos púberes néscios. Somente um jovem-homem é ainda capaz de sonhar,
desenhar projetos, pretender realizar sonhos individuais e coletivos. Senti-me
brindado por essa amizade e por aquela noite.
Só discordamos de um ponto: o romantismo. Para ele, o
romantismo é um perigo, pois desvela-se para a não-razão. – “Fazer concessões
sim, ser visceral, nunca. É preciso ser romântico com prudência”,
disse ele. Foi então quando petardei o fim de minha paixão pela Universidade
que ora se apresenta: produtivista, geradora do homo lattes, pragmática, sem
reflexão em que a produção derivada é cada vez mais o requentado de tantas
outras que por si só também já não diziam mais muita coisa. Estamos assistindo ao
mais do mesmo cada vez mais. A Universidade hoje é um lugar de inserção e
preparação para o mercado de trabalho, não mais da crítica dele. Como diria
Marilena Chauí: a Universidade se rendeu a um lógica fordista de produção
intelectual, para ela, esquizofrênica. Como bom “romântico”, me disse para não
perder as esperanças, a vida é mais. Está em pequenos detalhes, pequenos
gestos.
A vida se revelava, por exemplo, nas óperas de Giacomo
Puccini, que o pai de Flavio tanto ouvia quando ele era ainda uma criança. –
“Meu pai era um romântico, Henrique.... Agora me dou conta de que eu
também versava sobre o mundo em literatura e na fotografia. Aliás, porque
teu blog se chama versura? Perguntou ele”. Contei-lhe que tal expressão era uma
homenagem ao filólogo italiano Giorgio Agambem, que me foi apresentado pelo
poeta Alberto Pucheu Neto. Disse ele que em latim Versura significa varrer,
levar para o outro lado, mudar. Em português, a conotação mais aproximada disso
levado à literatura é o desdobramento da palavra.
Ao entrarmos no carro, revelou-me que havia deixado a
captura do mundo pela literatura e pela fotografia porque pensara que cada
instante deveria não ser encapsulado sob outra forma ou linguagem, tem que ser
vivido ali e apenas guardado na memória.
.... – Você tem razão... vou voltar a escrever e
fotografar... Eu também sou um romântico... Quando eu chegar a casa, vou
ouvir Puccini.