Para meu grande mestre Marcos Antonio Macedo Muniz
Uma estela ocupa o alto de uma pirâmide azteca. Bem de
perto, a representação do sol. Para eles, o deus Huitziloptli. Não apenas entre
os aztecas, antigas outras civilizações tinham o sol por divindade: deus-sol,
Apolo para os gregos, Rá, no Egito antigo, Agni, na Índia, Mithra, na
Pérsia.
Entre os nossos indígenas, Tupã era a estrela incandescente gigante,
a representação da luz e ao mesmo tempo um deus. Para os incas, Inti, o
deus-sol, era a suprema força do universo. Toda cidade inca é ao mesmo tempo um
centro administrativo e religioso, tendo por função a atividade astronômica.
Eles dependiam do sol para tudo, afinal, como hábeis observadores
celestes, necessitavam do astro para definição de plantio, colheita e
calendário e, sobretudo, para as festividades, tendo como ponto alto, a festa
do sol, no nosso calendário, mês de Junho.
A 40 km de Lima existem até os dias atuais as ruínas de
Pachacamac (em Quéchua quer dizer: aquilo que dá vida ao mundo), um centro
religioso, templo com vistas para o Pacífico do deus-sol Inti. Todos os dias
havia o ritual do pôr-do-sol. O lugar é belíssimo, feito de barro, com
templos em cima das dunas, majestosamente erguido como adoração de sua suma
divindade.
Curiosamente em Jericoacoara, Ceará, existe um ritual
parecido que se repete todos os dias do ano na duna do pôr-do-sol. Os turistas
que lá se encontram dirigem-se ao cume, por volta das 17 h, sentam-se em frente
ao Atlântico e ao sol esperam silenciosamente o seu ocaso. Quando acontece,
geralmente por volta de 17:45 h, todos aplaudem o astro-rei e voltam para a
cidade, bem perto, uns para assistir a jogos de capoeira, bares, dentre outras
coisas.
Além de um fenômeno natural belíssimo, um
dos maiores da natureza, por que ao longo da história antigas civilizações o
cultuaram? Pode ser pela relação do nascimento do pensamento ascético, ou seja,
na ausência de uma explicação racional astronômica as sociedades
divinizaram o sol por não compreender seu sentido físico, composição de
hélio e outros gases, mas considero isso muito pouco. A questão é que existe
uma intrínseca relação entre o sol como centro do sistema solar, equilíbrio dos
planetas, portanto, do nosso universo, e o coração humano, centro do universo
particular.
Por essa razão, todas às vezes que se fazia um sacrifício humano
entre os aztecas, arrancando o coração da vítima, ritual religioso, erguia-se
ao sol, ou seja, o centro do universo humano era oferecido ao centro do
universo planetário.
Antigas civilizações, dentre elas a azteca, longe do
racionalismo empiricista moderno ocidental, desenvolveram a capacidade
intuitiva de pensar com o sentimento, pré-sentir, confiar no que imaginavam bem
mais do que deduziam. Por isso, sabiam que o sol era o centro do universo e não
a terra, como apregoou o imaginário católico medieval. E por causa da
teoria heliocêntrica, Copérnico, descobridor desta, Kepler e Galileu foram
duramente criticados pela Igreja católica; Galileu foi condenado pela
Inquisição, depois foi perdoado pelo Papa João Paulo II.
O sol como centro de disputa religiosa, quer na reforma de
Akhenaton no Egito antigo, quer durante a Idade Média
(teorias geocêntrica e heliocêntrica), precisa ser visto com
olhos de lupa, bem de perto. Essa questão passa também por razões
de fórum existencial, ou seja, por aquilo que o sol apaga, as
sombras, quer coletivas, quer individuais.
Como a capacidade discursiva de pensar o indivíduo como construção
da subjetividade é uma invenção moderna – o que os gregos faziam era a
investigação da psique –, antigas civilizações limpavam suas sombras
coletivas cultuando o sol, afinal, se o coletivo estivesse resguardado pela
claridade da luz, os indivíduos também estariam.
Como nas sociedades contemporâneas, ritos de limpeza das
sombras saíram do patamar coletivo nacional para agrupamentos menores
(religiões, terapias) e, sobretudo, para o plano individual, aparecimento de
técnicas como a psicanálise, como forma de lidarmos com nossas sombras,
são cada vez mais necessárias dentro de um mundo racional, individual,
tecnocrata, pragmático.
Em sociedades como a balinesa, existe um rito em que todo
balinês aos 17 anos tem seus dentes limados e nivelados para que os demônios da
raiva, da inveja, orgulho e cobiça sejam exorcizados, segundo Connie Zweig
(falarei adiante). Cerrar os dentes nesse caso significa liberação das sombras.
Mas, o que são as sombras? Segundo Jung, em O
lado negativo da personalidade: “a soma de todas aquelas qualidades
desagradáveis que preferimos ocultar, junto com as funções insuficientemente
desenvolvidas e o conteúdo do inconsciente pessoal”. São a nossa
incapacidade de lidarmos com nossos problemas, traumas e a revelação do nosso
lado mais obscuro que guardamos no nosso ego. E todos temos lados obscuros,
aflorando aqui e acolá. Elas aparecem desde a infância. As crianças aprendem a
lidar com o lado obscuro da humanidade através da literatura. Os contos de
fadas são a melhor expressão disso.
As formas de aparecimento das sombras são sutis, não nos
damos conta, pois que o ego camufla, disfarça, esconde e mente.
É difícil lidarmos com nossas sombras, elas são miméticas.
Já faz um tempinho, no meu apartamento, depois de passar lustra
móveis no meu guarda-roupas, as duas portas laterais são pretas, as duas do
meio são bege, deitado na minha cama, tive aquilo que se chama de ilusão
de ótica. O movimento que fiz com o pano deixou exatamente entre as duas portas
o desenho de um rosto dividido ao meio; de um lado da porta, “um anjo”, do
outro, “um demônio”. Intrigado com a cena, afinal, o desenho era nítido (não
vou recorrer aqui ao gestaltismo para explicar o formato [Gestalt, escola alemã
de psicologia que estudava a duplicidade de desenhos e formas, em
oposição ao Behaviorismo estadunidense]), fui tomar banho, quando tive um insight: todo ser humano
carrega em si o bem e o mal, é portador da bondade e da maldade, depende de
quais mecanismos ele acione mais. Foi inevitável não pensar nas minhas sombras.
Vou chamar aqui de maldades características que usualmente
cognominamos como tais por serem antíteses de comportamentos
considerados bons, como: inveja, ódio, raiva, cobiça, mentira, desfaçatez,
traição, leviandade, hipocrisia, falso-moralismo, tirania, opressão,
perversidade, dentre outros, embora no plano da existência, só
é possível entendermos esses sentimentos por aquilo que Kant
chamou de pares antitéticos, ou seja, só compreendemos uma coisa quando
automaticamente correlacionamos com aquilo que seja seu oposto.
Entre os antigos chineses, o símbolo que representa a
dualidade é exatamente o da harmonia: um círculo dividido ao meio por uma linha
sinuosa, elíptica, tendo por um lado uma parte branca com uma bola preta,
do outro, uma parte preta com uma bola branca. Esse símbolo é a expressão da
dualidade humana.
Têm pessoas que aparecem nas nossas vidas trazendo ainda
mais luzes, mas escondemos nossas sombras, outras trazem sombras, mas
escondemos nossas luzes, e umas outras ainda fazem aflorar ao mesmo tempo luzes
e sombras. É bom questionarmos por que acionamos esses tipos de pessoas em nossas
vidas, qualquer que seja o referencial e modelo. O que o nosso inconsciente,
leia-se, sombras, querem escamotear?
Connie Zweig e Jeremiah Abrams, organizadores da coletânea: Ao encontro da sombra: o potencial
oculto do lado escuro da natureza humana (Editora Cultrix, 1991, p.
17) afirmam:
Não podemos olhar diretamente para
esse domínio oculto. A sombra é, por natureza, difícil de
ser apreendida. Ela é perigosa, desordenada e eternamente oculta, como se a luz
da consciência pudesse roubar-lhe a vida.
O analista jungiano James Hillman, autor de diversas obras,
diz: “o inconsciente não pode ser consciente; a Lua tem seu lado escuro, o sol
se põe e não pode iluminar o mundo todo ao mesmo tempo, e mesmo Deus tem duas
mãos. A atenção e o foco exigem que algumas coisas fiquem fora do campo visual,
permaneçam no escuro. Não se pode olhar em duas direções ao mesmo tempo”.
Por essa razão, as sociedades antigas sempre cultuaram e as
contemporâneas continuam a contemplar o sol. Ele não é apenas um
astro físico que nos traz luz e calor, é a energia vital tensionante
entre o dia e a noite, claridade e sombra, afinal, todos os dias o sol se põe
para no outro dia erguer-se de novo. É um movimento cíclico, como é a
vida; ambivalente, caótica, desconexa, prolixa, porque somos a quintessência do
que é o universo, mas não sabemos lidar com isso. O universo está em nós, somos
o universo. Criamos e destruímos, amamos e odiamos, procriamos e matamos,
fazemos e desfazemos, inventamos e conservamos, agrupamos e separamos,
ensinamos e deseducamos, aprendemos e erramos.
O sol e a lua estão dentro de nós. Eles não são
antagônicos, são complementares, duais.
Como nós.
Então, para celebrar a luz do sol, uma toada de chegar, de
Chagas, Bumba-meu-boi da Maioba:
Se
não existisse o sol,
Como
seria pra terra se aquecer?...
Se
não existisse o mar,
como
seria pra natureza sobreviver?...
Se
não existisse o luar...
o
mundo viveria na escuridão...
mas
como existe tudo isso meu povo...
eu
vou guarnicer meu batalhão de novo!!
Ê
boi rapaziada!!!
Disse tudo sobre a dualidade que sempre acompanhou o ser humano, Henrique!Parabéns pela clareza e pertinência do assunto. Bjsss.
ResponderExcluirobrigado celinha. é assim mesmo, a gente vai vivendo e aprendendo. tenho tentado entender as minhas. mas sem deixar de ser feliz. aprender a entender as dualidades é a melhor forma de sermos felizes
ExcluirQuando lhe percebi poeta do sol, não estava equivocada. A sua ligação com o astro rei é visceral, salta as clarosentre linhas. Parabéns pelos textos, claros como o sol.
ResponderExcluirQuerida Dorian, são as pessoas que cruzam nossos caminhos que nos fazem brilhar, como você, por exemplo, sempre ávida por aprender, sede de viver,apesar dos percalços. Tua sede de viver é impressionante, lição de vida para todos. Tua busca é infinda. Saiba que te admiro muito. Tua vida é um exemplo a ser seguido.
ResponderExcluirabraços do amigo Henrique
muito lindo! você realmente é uma pessoa iluminada bjs.
ResponderExcluirobrigado minha linda. te adoro. beijos
Excluirmuito bom Henrique! Vide o conto de Oscar Wilde : O pescador e sua alma. Em suma este conto ocorre assim: um pescador se apaixona por uma sereia, mas que para viver no fundo do oceano com sua amada terá que se livrar de sua alma(sombra), assim mediante ajuda de uma fenticeira se livra da sua própria sombra. A sua sombra não aceita isso, e vai viajar pelo mundo, mas sempre voltando quando faz aniversário de suas separação, proponde se reunirem em um novamente, mas sempre rejeitado pelo pescador.(este conto esta no livro O fantasma de Canteville e outras histórias, L&PM). Além do mais no folclore ludovicense,os adultos não permitem que as crianças brinquem com suas próprias sombras (sobretudo quando falta energia e a luz da vela transforma a sobre maior e mais visivel), alegando que as proprias sombras a atormentaram ao dormi. Curiosamente há um livro com o título: VON FRANZ, Marie-Louse, A Sombra e o Mal nos contos de fada, São Paulo: Paulus, 1985 (nunca li este livro , mas tenho em pdf). Sombre Tupã, que Abbeville chama de Tupane, n verdade era o som das trovoadas e que o colonizador tentou transformar em um Deus semelhante ao Deus-cristão, mas não nada mais do que o trovão para os índios, que inclusive esta palavra é uma onomatopeia do trovão. (vd: CASCUDO, Câmara. A geografia dos mitos brasileiros.)
ResponderExcluirpoeta de papel, lindo isso. eu nao conheço esse conto do wild, vou procurar. obrigado pela tua observação arguta e pertinente.
Excluirabraços. te gosto muito. gostei da conexão com os mitos. baita sacação