Entre ser e ter que ser: a
interconexão entre as pessoas
Segundo
o mito, Quíron é filho de Saturno (Cronos) e da ninfa Filira. O deus, para se
esconder da esposa Reia,
se metamorfoseou em cavalo para se encontrar com Filira: dessa união nasceu o
centauro, metade cavalo e metade homem. Quando a mãe viu a criatura horrorosa
que havia posto no mundo, pediu aos deuses que a transformassem numa coisa
diferente: seu pedido foi atendido, e ela foi transformada numa árvore chamada
Tília.
Quíron
ficou abandonado: o pai fugiu, e a mãe não quis
saber dele. Imortal, por ser filho de Saturno, Quíron sobreviveu, sendo
encontrado por Apolo (deus do Sol dos gregos). Como pai adotivo, Apolo lhe
ensinou todos os seus conhecimentos: artes, música, poesia, ética, filosofia,
artes divinatórias e profecias, terapias curativas e ciência.
Adulto,
tornou-se ele um grande sábio, profeta, médico e mestre, transmitindo seus
conhecimentos a todos que desejassem aprender. Os heróis gregos (Hércules,
Asclépio, Aquiles, Jason, etc.) foram pupilos
de Quíron, assim como os filhos dos reis da Grécia. Ele era o ‘centauro chefe’
e o preceptor máximo, tanto das artes da sobrevivência, como da cultura, da
filosofia, e passou a orientar e burilar o intelecto dos discípulos, ficando
conhecido também por preparar os futuros heróis. Quíron era ainda expert
no uso da medicina de ervas e plantas e em Astrologia. Ele tinha o poder de
cura nas mãos, e o que não conseguia curar, ninguém mais conseguia.
Mas
um dia, durante a festa de casamento de um filho de um rei, os centauros
convidados se embriagaram e começaram a perseguir as mulheres, inclusive a
noiva. Travou-se uma batalha entre os centauros bêbados e os convidados, entre
os quais estava Hércules, que, acidentalmente, feriu Quíron, também presente à
festa, com uma flecha, ou na coxa, ou na perna, ou no pé (há várias versões) ou
seja, na parte animal do corpo. A flecha de Hércules, que havia sido banhada no
sangue da Hidra (e sendo, portanto, venenosa), causou em Quíron uma ferida
incurável; impotente para curar seu ferimento e não podendo morrer por ser
imortal, ele começou a sofrer intensamente, recolhendo-se a uma gruta no monte
Pélion onde, porém, continuou transmitindo seus conhecimentos aos discípulos.
E
então, a partir do mito, aprendemos que o significado astrológico de Quíron
abarca os arquétipos de Professor, Curador, Músico, Buscador, Mestre Astrólogo
e Guia de Busca. Ele simboliza a autorrealização
e a satisfação pessoal através de uma união holística da razão com a
paixão, do intelecto com o instinto, do animal com o humano. Ele é
estreitamente ligado com seu meio-irmão Júpiter, o tradicional regente de Sagitário
e da Casa Nove – áreas do mapa astral ligadas com buscas de todos os
tipos (http://tallerdechiron.blogspot.com.br).
A
passagem acerca do mito de Quíron
acima utilizada é uma analogia para a tangibilidade da relação entre as
pessoas. O professor é aquele que, exposto na roda da vida do conhecimento,
transmite aos alunos algo de valor, que no fundo serve em primeira instância para ele mesmo.
As
profissões, para além de suas condições imediatas, ou seja, a inserção do mundo
do trabalho exercida pelos profissionais, são também uma espécie de feixe de
relações sociais, também no sentido durkheimiano enquanto condição para a existência de grupos.
Porém, engana-se quem fizer uma leitura apressada de Durkheim quanto às noções de solidariedades
mecânica e orgânica. O sociólogo não se referia apenas a uma ideia de
sociedade como organismo
vivo, cujas inserções no mundo do trabalho exercem um
suposto equilíbrio, a la limite tal qual existente numa
colmeia, afinal, foi ele quem denunciou as contradições da sociedade moderna ao
pensar o suicídio. Ele também
se referia era ao fato de
que as noções de sujeito e subjetividade precisam ser repensadas.
Uma
das bandeiras do liberalismo dos séculos XVII e XVIII foi a propugnação das
noções de liberdade do mercado e do indivíduo. Claro, com o fim
da ideia de salvação coletiva medieval e a emergência do
protestantismo calvinista, o foco burguês passou a ser o indivíduo,
plenipotente em suas escolhas, crente num projeto moderno de civilização,
desfocado de uma noção de interação social, voltado agora para sua capacidade
de lutar e construir projetos e da valorização de sua subjetividade – basta
olhar a terceira fase do Renascimento na pintura: a fase dos autorretratos. Contratar
um pintor para um autorretrato era não só ultrapassar o medo da vaidade do
pecado, bem como acreditar na potência de que o “eu”, enquanto
categoria, deveria ser estandartizado.
Assim,
um ideal burguês de indivíduo paulatinamente ganhava força consubstanciado numa
ideia de liberdade de ação política e econômica, sem olvidar do crescimento do
capitalismo pari passu a esse processo.
O
que Durkheime alertava era que o indivíduo de fato existe, mas dentro de uma
margem muito pequena de manobra: indivíduo é na verdade o que fazemos com a
somatória de informações que nos cercam, o resto é indivíduo-coletivo, ou seja,
a rede que nos molda desde o nascimento abarca uma conjugação de fatores e
pessoas de que não nos damos conta: família, escola, bairro,
ambiente de trabalho, faculdade, lazer, etc.
Se
tomamos a concepção jungiana
de arquétipo a questão se agudiza. Se o primeiro homem está em nós, então a noção de individualidade perde ainda mais o
sentido, sim, pois parte então do que achamos que é nosso na verdade não é,
pertence ao coletivo, ao imaginário social.
Josefina
Ludmer, escritora argentina, trabalha com a noção de criação coletiva. Para ela
não existe criação individual, a criação é sempre múltipla, posto
ser impossível separar o que é nosso e o que foi apropriado de uma
matriz indefinível, portanto, quando os Titãs, grupo de rock,
cantam: as ideias estão no chão, você tropeça e acha a solução, estão evocando
um princípio que vem de Platão: a cosmovisão do mundo das ideias está
em todos os lugares.
Na
literatura, uma parte da teoria literária trabalha com o conceito de
narratário, ou seja, existe um sentido do texto para além do escritor e do
leitor, visto que
a ideia, “o insight”, precisa apenas do escritor para ser verbalizado,
colocado na cena humana, já que existia, ganha sentido próprio em cada leitor
decorrente de sua compreensão sobre o que é, sobre o que existe.
O
que quero dizer é que quando tomamos uma atitude,
as consequências não dizem respeito apenas às pessoas envolvidas diretamente com a decisão
tomada, essa atitude necessariamente pode não ter nascido em nós, e fatalmente
não atinge apenas as pessoas associadas, uma rede de relações está em jogo, já
que o indivíduo existe dentre de uma comunidade de aferições sentimentais. O
indivíduo é uno-múltiplo, nós estamos todos interconectados.
Influências, inspirações,
desejos, estão dentro de um jogo complexo de simbiose interacional,
multidirecional. O conceito de comunidade imaginada de Benedict Anderson
precisa ser mais bem analisado
e faz muito sentido, não apenas porque pessoas de uma mesma nação não se
conhecem, mas sobretudo porque estão ligadas por uma noção de afetividade
social, nação, pátria, pertencimento. Isto implica dizer que quando pensamos em algo como próprio ou
inato, em última instância
tal atitude está alicerçada na proporção que tal atitude se relaciona
com o meio, se a proporção foi muito grande, recuamos de tal decisão.
O
mito de Quíron serve para
compreendermos como ao mesmo tempo o curador é ferido, o que ensina, aprende, o
que constrói, refaz-se, o que quer acertar, erra, quem julga já está se
condenando, quem não ama, morre, quem morre, renasce. Quíron nasceu na fenda da existência; quem passa por essa fenda não tem cura, não tem
jeito, não tem volta. Ele é fruto de uma aporia, ou seja, não-passagem. Algumas pessoas optam por existir a partir
da fenda da existência, essa é a forma que escolheram para ajudarem os
outros e entenderem a si mesmos.
A
flecha de Hércules pode ter atingido Quíron acidentalmente, mas fatalmente ao nunca cicatrizar a
ferida, tendo vergonha de expô-la, ele foi obrigado a lidar com suas
deficiências, sua incapacidade de autocura,
logo ele, um curador, aquele que
se colocava na condição de ajuda do outro.
Assim
é o professor. Ao “ensinar” algo, ou ajudar no processo de aprendizagem
cognitiva, é obrigado a repensar suas práticas, se aquilo que transmite
eficazmente ecoa dentro dele. Por vezes, é
obrigado a lidar com sua inexperiência, deficiências, limitações. As
feridas abertas demarcam a condição humana, impõe limite a qualquer presunção
de plenipotência.
Belíssima analogia. Valeu!
ResponderExcluirAmado, parabéns pelo post!
ResponderExcluirDiante da belíssima homenagem à nossa conversa, gostaria de complementar com mais um aspecto bem interessante de Quíron: infelizmente e não raro, nós - professores, psicanalistas, curadores de estilos variados, enfim, qualquer um de nós que tenha uma troca sensível com o Outro - vivemos um dilema bem dilacerante: achamos que não somos dignos de fazer esta troca! Afinal, como é que eu, na "baixeza" da minha humanidade, posso ensinar o Outro?
Este era o cerne do drama de Quíron: como é que o Grande Sábio e Exímio Curador poderia ensinar e curar se, ele mesmo, é um Ferido Incurável? Pois é... assim como todos nós, o que nos possibilita a escuta atenta e a troca sensível com o Outro são exatamente as nossas fétidas feridas - sobretudo o que fazemos com elas...
Tanto é que, na Astrologia, o Planeta Quíron pode revelar onde se encontra a maior ferida do indivíduo, como e quando ela se abre e, se ele exercitar lamber esta ferida pelo exercício constante de conscientização, torna-se apto a (atrair e) ajudar outras pessoas com as mesmas questões.
Portanto, Quíron é um belíssimo exemplo e veículo de compaixão (do grego co-pathós, que significa "sofrer com")!
Beijão
querida Luzente. obrigado por mais esse aprendizado. beijos
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