terça-feira, 8 de maio de 2012

sobre as distopias dos não-lugares

O filme “O Terminal” (2004), dirigido por Steven Spielberg, com parceira de Tom Hanks, e estrelado por esse último, narra a história de Viktor Navorski, um viajante do leste europeu que, ao adentrar nos Estados Unidos, aeroporto John Kennedy, New York, é tomado de surpresa por um golpe de estado em seu país natal, impossibilitando-o obviamente de sair do aeroporto. Isto porque com um golpe de estado os países não são obrigados a receberem os cidadãos de tais lugares, posto que as relações diplomáticas são cortadas. 

O que o filme de uma forma ingênua não explora é que no fundo os aeroportos constituem-se como não-lugares na contemporaneidade para os viajantes, não para quem trabalha nele. O conceito de não-lugar denota espaços de dispersão social sem agregação afetiva, de construção de relação política, da ideia clássica de pólis, urbe, pois os transeuntes não são daquele lugar, estão sempre de passagem, de forma apressada em busca de novas rotas. Como diria Marc Augé, antropólogo francês, autor do conceito, não-lugar é um espaço de passagem incapaz de dar forma a qualquer forma de identidade. 

A questão é que os não-lugares são cada vez mais comuns na ultramodernidade, já que o termo pós-modernidade não se aplicaria bem. Com o avanço rápido do capital, alterando substancialmente a percepção de tempo, espaço, coisificando os sentimentos, viver passou a ser referente de remir o tempo, lastreado pela concepção mais que voraz de consumo. O consumo é quem estabelece as bases da cidadania, logo, o preposto clássico de participação do sujeito cidadão enquanto premissa da política, forjada no classicismo grego, foi substituído pela potência do ato revolucionário de consumir, qualquer que seja a coisa: afetos, desejos, festas, situações. 

Nos aeroportos, em decorrência do avanço da tecnologia, é possível fazer o check-in de casa, ou de qualquer lugar que possua a portabilidade digital, então, se o sujeito não tiver bagagem para despachar, pode ir direto para a sala de embarque. Lá dentro com o seu laptop, iphone, ipad, não se comunica com ninguém, a virtualidade é o seu mote.

Esse é um dos problemas da tecnologia e da internet: conecta e desconecta as pessoas ao mesmo tempo. O italiano Giorgio Agamben, em sua obra O que é contemporâneo, faz uma dura crítica ao uso frenético do celular. Esse instrumento, cognominado por ele como utensílio, equipamento, dispositivo, leva as pessoas a um estado de não percepção de nada ao redor, ao não ser a suposta ligação sensorial com outra pessoa do outro lado da linha. O problema é que com o frenesi da vida moderna, passamos a falar muito mais com o outro distante do que com o próximo.

Uso dessa mesma prerrogativa para criticar determinados usos do facebook. Ferramenta poderosa de interação, algumas pessoas se dessujeitaram a tal ponto que, como não conseguem lidar com seu silêncio interno, necessitam o tempo todo consumir o que os outros fazem de forma instantânea ao mesmo tempo em que postam absolutamente tudo o que fazem, ou seja, ante a caoticidade da vida, a vitrina do face serve como elemento de consumação da vida, significação da vida, necessidade de estar e ser, ser visto e ver, consumir freneticamente. Já existe até a expressão: “essa foto é para o face”.

facebook, assim como o recente e já em desuso orkut, estabelecem novos padrões de sociabilidades impondo uma necessidade instantânea de comunicabilidade. A questão é se essa necessidade tão premente de se comunicar não se dá exatamente pela real falta dela. 

Isto explica em parte por que a chamada para questões políticas e sociais sempre perde em compartilhamento, curtição, etc., no ranking de popularidade do facebook. É como se a internet e suas ferramentas não fossem para coisas “sérias”, “cabeçudas”, posto que perdemos em grande parte a capacidade de reflexão, logo, facebook, orkut, são extensões do esvaziamento dos sentidos e tecidos sociais, e ao mesmo tempo, uma vontade de estabelecer nexos, laços.

A necessidade de aumento da velocidade da internet é proporcional à nossa voracidade de consumir as relações freneticamente, sem que necessariamente se estabeleçam vínculos sensoriais e sentimentais. É como se a tecnologia fosse extensiva ao nosso corpo, e de fato já é. O cinema e a literatura já abordaram isso.

O transumanismo advoga a imbricação entre vida biológica e tecnologia sob o argumento de que os homens sempre se serviram de ferramentas para a ampliação da concepção de vida e que, portanto, a resistência a essa tendência é antes de mais nada moral, religiosa. Sob esse aspecto, cabe questionar qual é o lugar do corpo na sociedade ultramoderna e se o corpo transumano não se constitui um não-lugar em si mesmo, absolutamente coerente com o avanço das relações aceleradas da sociedade ultracontemporânea. Aliás, somente um corpo transumano comporta a velocidade de uma sociedade hiperveloz, hiperreal, para usar uma expressão de Jean Beaudrillard.

Das vezes em que ando de ônibus fico observando as pessoas com fone de ouvido.  Questiono-me se o fone é para distrair ante o longo trajeto até o destino, se para não se perceber as condições de uso do coletivo, se para evitar qualquer contato com o usuário, ou se o somatório de todas essas acrescidas de tantas mais.

A questão é que as relações humanas estão mudando radicalmente e com elas a noção de identidade. O grande problema dos não-lugares é a impossibilidade de fixação de qualquer parâmetro indentitário. Os não-lugares sociais são em última instância os não-lugares de nós mesmos, ou seja, o que se estende aos espaços sociais são reverberações da amplitude da definição do sujeito, ao mesmo tempo, de sua redução, já que ele só se potencializa à medida que se expande, logo, se dessujeita, se estende a limites ultra-corporais. Qual é a capacidade de expansão sensorial humana? Quantas consciências cabem nos nossos múltiplos corpos, a que fala ao telefone ao mesmo tempo que tecla no chat, a que posta uma foto no face, a que come enquanto ouve televisão?

Por outro lado, com o avanço das tecnologias aumentou a percepção sensorial das novas gerações. Na condição de professor sei quão é difícil deter a atenção dos meus alunos por muito tempo, já que em suas mesas, com o serviço de wireless, seus laptopsiphonesipad’s, os ligam ao mundo de forma interativa, rápida e às vezes mais dinâmica. Eles executam várias tarefas ao mesmo tempo, o que eu por exemplo tenho muita dificuldade. A sala de aula em alguns momentos se torna um não-lugar, posto que após o término, os alunos correm para uma lan house ou suas casas para comentarem com seus colegas que passaram a manhã com eles o que acharam ou não acharam da aula que acabaram de assistir, ou qualquer outro assunto.

O que fazer diante de tais questões? A resposta é difícil, pois é igualmente difícil a sociedade definir o que quer; caímos num absoluto reducionismo individualista, subjetivista, relativista. 

Penso que isto se trata de uma estratégia subjacente e sub-reptícia do capital. Eu explico. A defesa de que a felicidade só pode ser adquirida individualmente deita raiz numa lógica de não organicidade coletiva, logo, de esmaecimento de qualquer luta social, ideológica, já que o indivíduo sozinho, longe de sua individuação coletiva, se sente desmotivado a qualquer mobilização política, portanto, o imaginário social está sendo cada vez mais alicerçado na ideia de que não há saída, não há mudança, não há sonhos, somente o imediatismo. Se não há saída, não resta outra coisa a fazer a não ser consumir tudo freneticamente, mas nem isso preenche o vazio, e, portanto, lá estamos nós em busca de mais divertimento, mais velocidade, só o imediatismo é capaz de preencher os não-lugares físicos e sentimentais.

Os não-lugares são a maior expressão das distopias, ou seja, da ideia de que nada tem profundidade, tudo é voraz, tudo é volátil, tudo é etéreo.      












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