Na sala, papéis embolados empilhando a passagem da porta
até o restante da casa. São rabiscos, traços, vociferações de um desejo
compungido de desenhar aquela palavra, aquele verso quase inaudito, quase
perfeito. Ao fundo, uma melodia graciosa como inspiração, cigarro aceso sobre a
mesa, uma garrafa de café, um olhar de soslaio pela janela; a vida lá fora
agitada, vidas sem rumos, algumas à procura de sentido, outras à procura do
capital. Nada apascentava o espírito de Condorcet. À frente dele a tela do
computador, versos numa parede branca de word,
palavras salpicadas, livros de Drummond, Neruda, Manuel Bandeira, Florbela
Espanca, Alberto Pucheu Neto, Fred Góes, Augusto Venturoso,
críticos literários, Agambem, Italo Calvino, Roland Barthes, manuais de
literatura, dicionários de sinônimos, o último disco de Chico Buarque, tudo ali
na mesa próximo ao teclado do computador.
Mais um papel quentinho sai da impressora com versos
embotados. Mais um embolado empilhando a passagem. Ainda não foi dessa vez, o
verso inaudito ainda não saiu. Condorcet se perguntava como poetas, músicos,
artistas enfim haviam chegado lá. Como haviam conseguido dar sua marca à
existência, influenciado pessoas, ter dito coisas fantásticas que tocavam a
alma de muitos, como conseguiram dizer coisas que outras nunca disseram, de
onde vinha a inspiração, de que matéria se fazia uma boa inspiração? Era apenas
técnica, muita leitura, sorte, anos de experiência, graça da crítica que por
uma razão "escolhe" um ou outro artista, poeta, literato, enfim, para
ser a bola da vez?!!! De onde vinha a inspiração dos artistas? O que os movia?
De que matéria eles eram feitos?
Foi burilando poemas, lendo e relendo romances, vendo e
revendo filmes, livros de crítica literária, entrevistas com seus escritores
prediletos que percebeu uma nuance em comum em todos eles. Todos, sem exceção,
eram inquietos, angustiados pela busca do sentido da vida, e cada poema, cada
música, cada quadro pintado, ou quadro a quadro do cinema são excertos da mesma
paisagem, da mesma cena, dita de forma diferente por homens e mulheres ao longo
dos tempos.
O que faltava a Condorcet não era técnica, leitura,
experiência, era ser compelido por um sentimento tão arrebatador que quando vem
é uma tormenta impossível de frear, represar, parar. O que ele
constatou foi que em toda obra de arte há algo para além de quem fizera, existe
um narratário, um sentido do texto, do poema, do filme, da pintura, da
fotografia, da arquitetura, da dança, do picadeiro do circo, do teatro,
existindo em si mesmo quase independentemente do artista. A forma do narratário
de existir é pincelada sim pelas matizes do autor, por vezes crivada,
obliterada, mas depois de existindo, ainda que recortada pelo viés de quem dera
vida à obra, ganha sentido em si mesma porque necessita viver e não faz sentido
existir sem estabelecer correlação, aliteração com quem lhe permitiu existir.
O que faltava a Condorcet era viver. Viver não é apenas
pagar conta, ser famoso, ganhar na loteria, pintar a casa, pensar naquela
pós-graduação, comprar um carro novo, pegar aquele corpo escultural. Viver é
buscar o sentido da vida, sentir, sorver, absorver, transmitir, sorrir,
chorar... amar.
O que ele queria era a metrificação dos versos, aquele
jeito de escrever que a crítica gosta, aquele neologismo que vai cair no gosto
dos leitores, aquela forma que uma tendência literária quer. Seus versos tinham
forma, mas não conteúdo, faltava corpo, alma, pulsão, algo de teúdo,
que conserve a essência que está presente em toda obra feita por e
pelo amor.
Em tudo o que existe, existe pela essência de
amar. É o amar que se transverte de inspiração, ganha nova conotação, se pinta
de palhaço, sopra aquele insight no ouvido do compositor, dá aquela
inspiração ao ator quando esquece a fala na boca de cena do teatro,
desloca o olhar do fotógrafo para uma paisagem, se traveste em
enredo, numa epopeia de escola de samba na passarela, vira apoteótico
e simples ao mesmo tempo, derruba um livro “sem querer” abrindo numa
página com aqueles versos que tanto buscava, relembra uma cena de amor
importante vivida, chora diante de uma cena romântica de
filme, esquece aquela última briga terrível com o parceiro,
parceira, amigo, toca na intangibilidade da saudade. A saudade não é a
lembrança do que se viveu de bom, é a certificação de que aquilo que se viveu
de bom não pode ser esquecido, precisa ser vivido continuamente. A saudade
é antítese da não-memória do amor.
Foi então que Condorcet abriu um novo documento do word, começou a desenhar
poemas-epitáfios inspirados na energia potencial de tudo o que todos os
artistas, amantes já viveram, pois uma vez criada a energia cinética do sentir
ela paira do ar para nunca mais desaparecer, existe por existir, precisou da
inspiração, da caneta, pena, ensaios exaustivos dos artistas para ganhar forma
e continuar contagiando a todos que buscam a sensação do que
é existência.
A energia cinética estava nos papéis embolados que
empilhavam a sala de Condorcet. Quando perceberam que ele não mais se
preocupara somente com a forma, e mais com o conteúdo, saltou dos papéis
embolados para ganhar novos sentidos na tela do computador. Já não havia mais
distância entre o que Condorcet pensava, seus dedos que deslizavam sobre o
teclado e o formato de palavras na tela branca. Sentimento, sentido, forma
e conteúdo finalmente eram uma coisa só. Foi então que entendeu o que
havia lido em Fred Góes: "a alma só se expressa na literatura, não no
divã. A alma está no personagem, não nos sujeitos... Os deslimites da alma, os
deslimites dos sujeitos se expressam no circo, pois o circo é a desmesura do
corpo".
Então... não se ouviu a poesia... ela não nasceu.
crítica ou texto?
ResponderExcluiro texto é um a priori, o artista é um meio de si mesmo, de algum lugar desconhecido por si, mas presentifica-se ali, no onde, como, o que, antes de acordar o texto já está ali, a pressão da pena sobre o papel, dos dedos sobre o teclado, são apenas o instante que aquilo que não tem nome se versifica, por isso ninguém é dono do próprio texto, da própria vida, "ninguém é sonhor na própria casa" (Freud), é disso, é de nada, um buraco que diz! Condorcet só escreve quando sai de cena, quando é homem, apenas homem, apenas um lugar, daí seu texto pode aparecer, aí a palavra flui e inventa seu sentido.
duda, adorei a expressão:"Condorcet só escreve quando sai de cena"... não tinha parado para pensar nisso..
ResponderExcluirNão se pode ser gênio quando os fatores exteriores simplesmente subulgam literalemnte a sensibilidade poética, a alma angustiada do artista que cada vez mais se rende ao público, violentando o seu ser. Seria interessante escrever também sobre como o computador mudou a maneira de escrever, ao meus ver muito menos introspectivo do que as maneiras mais tradicionais.
ResponderExcluirSubjugam*
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